O exílio feminino na criação erudita

O Estado de S.Paulo - Segunda-feira, 9 de julho de 2007

seg, 09/07/2007 - 17h28 | Do Portal do Governo

O Estado de S.Paulo

‘Esta separação temporária deixou claro para mim que nossa situação é particularmente difícil. Será que preciso sacrificar meu talento só para servir como seu companheiro de viagem? E, inversamente, será que você tem que jogar seu talento no lixo só porque estou acorrentado à revista e ao piano? ‘ Robert Schumann estava mais deprimido do que o seu normal naquele início de março de 1842. Ele, com 32 anos, largara sozinha a bela esposa Clara, de 23 aninhos, em plena turnê. O estopim foi a recepção à pianista em Oldenburg para a qual Robert não fora convidado. As brigas se sucediam, ele reclamando daquela ‘indigna situação’ e de ela sequer programar peças dele em suas turnês. A coisa não estava mesmo fácil. Mas o fato é que Clara Schumann (1819-1896) teve oito filhos com Robert, sustentou a casa praticamente todo o período de casamento, de 1834 a 1856, pagou as internações dele. Deu casa, comida, roupa lavada ao marido e à penca de filhos. E – ia esquecendo – ainda encontrou tempo para compor.

Quando se fala em mulheres e música, Clara é a primeira a ser citada. Com justiça – ela foi única na relação marido-mulher na primeira metade do século 19. E sua música tem certo interesse, como o público poderá conferir no Festival de Inverno de Campos do Jordão no dia 18, quando Sonia Rubinsky será solista do seu Concerto para Piano e Orquestra, ao lado da Sinfônica de Campinas. Clara inverteu de modo fulminante a condição da mulher musicista do século 19 para cá. Um rápido exame mostra uma lista de cantoras e pianistas bem grande. Mas quando se pensa nas autoras, o cenário é outro. Muito rarefeito. Atribui-se o fato à repressão, bem mais pesada, contra a mulher como compositora. Como cantora e instrumentista, tudo bem, mas aventurar-se num domínio eminentemente masculino era petulância demais.

As histórias da música em geral recalcam as mulheres compositoras – preconceito que só agora começa a ser enfrentado pela musicologia. No século 18, várias mulheres trabalhavam com música nas centenas de pequenas cortes espalhadas pela Europa. Às vezes escondiam-se em pseudônimos para não provocar a fúria masculina. É o caso de uma tal de Miss Philharmonia. Não se tem nenhuma documentação sobre ela, a não ser seis divertimentos e seis sonatas, publicados em Londres no século 18. Outra figura rara foi Anna Bon di Venezia, que trabalhou como cravista na corte de Bayreuth. Encantado com ela, seu patrão lhe deu o título de ‘virtuosa di musica di camera’. Ana Bon também tocou na orquestra de Esterhazy, comandada por Josef Haydn. Escreveu até uma missa e uma ópera, que se perderam. Morreu em 1765.

Fanny Mendelssohn Hensel, talentosa contemporânea de Clara, não teve tanta sorte, apesar do sobrenome também ilustre. Ambas foram compositoras e merecem ser ouvidas com atenção. Porém, só são conhecidas daqueles que se dispõem a ler as biografias de Mendelssohn e Schumann. Fanny nasceu em 1805, quatro anos antes de Félix. Juntos formavam o par perfeito ao piano. Ela estudou composição com Zelter, o mesmo professor de Félix; casou-se com o pintor Hensel. Chegou a publicar seis lieder com o nome do irmão, mas o restante de suas obras só foi publicado postumamente. A Sony acaba de lançar no mercado internacional um ótimo CD com a pianista Lauma Skride. O prato principal e exclusivo é o ciclo pianístico O Ano – 12 Peças Características, assinado por Fanny. A graça, leveza e adequação de sua escrita pianística são incontestáveis.

Episódios de recalques e preconceito com relação às mulheres compositoras continuaram ocorrendo no século 20. O genial jornalista e polemista vienense Karl Kraus escreveu, em carta de 1916: ‘Hoje Schoenberg veio me visitar (…) mostrei-lhe a Metamorfosi de Dora (poema de Kraus musicado por Dora Pejacevic, amiga de ambos). Ele considera natural que uma mulher não pode ser uma criadora musical, mas mesmo assim elogiou a composição.’ É claro que a situação melhorou, a ponto de a grande pedagoga da composição européia ser uma mulher, Nadia Boulanger (1887- 1979). Depois de a trinca de ouro Stravinsky-Prokofiev-Shostakovich dominar a cena russa durante a primeira metade do século, a segunda metade tem em mulheres dois terços da atual trinca de ouro: Alfred Schnittke (1934- 1998) espreme-se entre Sofia Gubaidulina, com 76 anos, e Galina Ustvólskaya (1919-2006).

No Brasil, o século 20 foi pródigo em grandes musicistas. É impressionante a longevidade das três maiores figuras feministas na música brasileira. A soprano Bidu Sayão viveu 97 anos, entre 1902 e 1999; a pianista Magda Tagliaferro pintou os cabelos cor-de-fogo até os 93 (viveu entre 1893 e 1986); e Guiomar Novaes viveu 83 anos (entre 1896 e 1979). Mas elas são performers, e não compositoras. Ainda bem que o Festival de Inverno de Campos do Jordão, antenado, além de convidar intérpretes como a pianista Cristina Ortiz ou as musicistas do Trio Eroica, escolheu Jocy de Oliveira como compositora residente desta edição. Perto de completar 70 anos em 2007, esta paranaense tocou Stravinsky regida pelo próprio, teve obras dedicadas a ela por nomes como Luciano Berio e Iannis Xenakis. E é hoje a mais importante compositora brasileira dedicada à criação multimeios, ou multimídia.

Gestos como este, de escolher a mulher como tema de um festival inteiro, são conseqüência direta da emergência do feminismo e dos ‘estudos culturais’, que felizmente acabaram, de certa forma, com os preconceitos recorrentes na história da música. Sempre haverá os ‘porcos chovinistas’, gente como o compositor americano Charles Ives (1874- 1954), que esculhambava até autores machos sobre os quais pairasse a menor dúvida sobre sua masculinidade. Dizia, por exemplo, que Chopin devia usar saias.

Mas, cá entre nós, uma pesquisa sempre ajuda a calar a boca dos preconceituosos. Foi o que fez Marianne Hassler, no artigo Biologia e Criatividade, incluído em Il Sapere Musicale, terceiro volume da enciclopédia editada pela Einaudi italiana e coordenada por Jean-Jacques Nattiez (2002, Turim). Ela se perguntou: será que a composição de uma mulher vale menos do que a de um homem?; o método de compor feminino se reconhece, por exemplo, no tipo e número dos instrumentos escolhidos?; as mulheres compõem de modo diverso dos homens, ou seja, existe um estilo de composição feminino?; e as mulheres compositoras têm traços de personalidade diferentes dos homens compositores? Todas as respostas são negativas. Não é possível estabelecer qualquer diferença marcada. Hassler foi fundo. Para responder à primeira pergunta, 17 rapazes e 13 moças compuseram uma pequena peça; executaram uma peça; improvisaram livremente; e improvisaram sobre um tema dado. Quatro especialistas julgaram os resultados sem conhecer os autores. Não foi possível destacar nenhum critério composicional tipicamente masculino ou feminino.

Finalmente: há um estilo feminino e um masculino de composição? O psicanalista Carl Jung dizia que o homem extrai suas forças criativas de sua porção feminina, digamos assim; e que as mulheres fazem exatamente o contrário, ou seja, deixam aflorar seu lado masculino ao criar. Jung considera como qualidades femininas a intuição e o sentimento orientado para o lado pessoal, enquanto as habilidades masculinas privilegiam a ordem, o pensamento e a organização. A partir disso, espera-se que, ao compor música, os homens tendam para a intuição e as mulheres à racionalização. Baseando-se em informações biográficas de Dora Pejacevic (a amiga de Schoenberg e Kraus acima citada), Younghi Pagh-Paan e de Alban Berg, as análises concluíram que Dora compunha de modo masculino, enquanto Paan e Berg escreviam à feminina (epa). Portanto, também não é possível atribuir um estilo composicional determinado ao sexo do compositor.

Resumo da ópera: recalcadas por tantos séculos, as mulheres usaram a bandeira feminista para contar uma outra história – a das mulheres na música. Aí o preconceito se inverte, mas o resultado permanece distorcido, como aponta o musicólogo Alastair Williams no livro Constructing Musicology (Ashgate,2001). Exumam-se cadáveres que mereciam permanecer sepultados, na grande maioria dos casos; deseja-se, no fundo, estabelecer cotas para as mulheres na música, como se faz hoje polemicamente com relação às raças nas universidades brasileiras: ‘Virginia Woolf e Jane Austen não precisaram ser exumadas, nem as qualidades de sua escrita esperavam ignoradas para serem redescobertas. Mas há poucas, se é que há, mulheres compositoras disponíveis para estudo.’ É rigorosamente verdadeiro. Garimpa-se, garimpa-se, mas, excetuando-se o século 20, são raros os nomes – e menos ainda os realmente consideráveis.

A conseqüência mais importante e benéfica de tsunamis como o feminismo e os ‘cultural studies’, dos anos 50 para cá, foi dar um safanão na musicologia, a disciplina guarda-chuva dos estudos musicais, que dormiu no berço esplêndido da música absoluta por séculos. Felizmente, hoje, não dá mais para continuar pensando a música de modo descolado da realidade social, cultural, econômica e política – como teimam em continuar fazendo, de modo anacrônico, diversos departamentos de música das universidades brasileiras, sobretudo as mais estreladas (que recusam sistematicamente proposta de teses de mestrado e/ou doutorado envolvendo aspectos sociais da música; por isso, as mais interessantes migram para outros departamentos, como história, literatura e comunicações). A música só ganha significado rebatida contra os panos de fundo citados. Claro que é possível descrever a música em termos de estruturas, mecanismos formais ou modelos de sonoridade, diz a musicóloga Carolyn Abbate em Unsung Voices (Princeton, 1991). O ridículo, complementa, é ‘considerar tudo isso como análise neutra, uma espécie de nível zero da verdade objetiva. Já nos demos conta de que este nível zero é um lugar fictício’.

As mulheres, por exemplo. Julgar de modo neutro a produção das (raras) autoras que conseguiram tornar públicas suas obras nesse panorama de ‘nível zero da verdade objetiva’ é, diz com humor Carolyn Abbate, ‘como se a Lolita de Nabokov deixasse de ser a narração de uma história trágica com divertidos episódios pornográficos para se tornar simplesmente uma coletânea de belas palavras’. É o mesmo que faz Stravinsky em sua Poética Musical, na qual diz que a música é uma ‘linguagem sem nenhum traço de conexão com a sociedade’. Isso é encarar a música como pura sonoridade, postura anacrônica que dominou o estudo e a sua interpretação nos últimos 200 anos. E que hoje parece, aleluia, datada.