O dadaísta que criou a instalação

O Estado de S.Paulo - Terça-feira, 16 de outubro de 2007

ter, 16/10/2007 - 12h19 | Do Portal do Governo

O Estado de S.Paulo

O artista alemão Kurt Schwitters (1887-1948) entrou para a história da arte com o injusto epíteto de ovelha desgarrada do dadaísmo. Os próprios dadaístas viam Schwitters como um pequeno burguês tentando chocar outros burgueses escandalizáveis. Dadaístas eram os berlinenses. Schwitters era apenas um artista de Hannover posando de revolucionário. Nada mais injusto. Uma exposição retrospectiva com 120 obras suas, que a Pinacoteca do Estado inaugura hoje, dá uma dimensão mais justa do que representou a atuação do artista na Europa dos anos 20 quando, dividido entre o rigor dos construtivistas russos e a provocação dadaísta, Schwitters escolheu ficar com os dois. Agora, os brasileiros vão poder atestar que o talento visionário do alemão foi além da negatividade dadaísta, antecipando em décadas alguns dos procedimentos hoje incorporados por artistas contemporâneos, entre eles a colagem, a instalação e o uso de materiais rudimentares na criação de obras artísticas.

Não fosse por esse motivo, a exposição já seria importante por outro. Há 46 anos São Paulo não via uma obra de Schwitters. A última vez que os paulistanos passaram os olhos numa de suas históricas collages foi na VI Bienal Internacional de São Paulo (1961). Raras nos museus brasileiros, apenas uma obra sua pode ser vista no Museu de Arte Contemporânea (MAC) de São Paulo. Pensando nisso, o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha e o Instituto Goethe de São Paulo resolveram em parceria reunir as 120 obras das coleções do Museu Sprengel de Hannover e da Fundação Kurt e Ernst Schwitters, os dois organizadores da mostra que marca o início do Kulturfest, festival dedicado às artes (cinema, música, dança, artes visuais) promovido pelos institutos Goethe do Brasil até 2 de dezembro.

A seleção traz exemplares de todos os períodos do artista, entre desenhos, collages, assemblages, esculturas e até uma réplica do Merzbau, obra-chave concebida antes que a Alemanha mergulhasse em seu pesadelo, testemunhando a ascensão de Hitler ao poder, e destruída num bombardeio aéreo, em 1943. A palavra Merz é uma espécie de pedra de toque na obra schwittersiana, extraída de um fragmento de jornal com a palavra Kommerz. Ironia. Provavelmente vinha de Kommerzbank, banco comercial, indicando sua resposta aos dadaístas, que o consideravam burguês, embora Hans Arp tenha sido o primeiro a persuadir Schwitters a abandonar a academia. Merzbau foi o centro da criação desse mito pessoal. Nasceu no próprio estúdio do artista.

Nessa protoinstalação, que começou em 1923 e passava por todas as paredes do mesmo, collages e assemblages unidas por fios de arame e cordas desciam as escadas e tomavam toda a casa. Schwitters juntou a ela um bizarro conjunto de objetos achados, presenteados por amigos ou desprezados por artistas, antecipando em muitas décadas o site specific e as instalações de Tony Cragg (não se deve esquecer que o escultor inglês vive em Wuppertal e conhece bem a arte alemã). Antes de Cragg, outros beberam na fonte de Schwitters. O pintor pop Rauschenberg foi um deles. Nos anos 1960, ele grudou objetos à tela numa típica solução neodadaísta, guardando muito da ironia das collages de Schwitters e, por conseqüência, absorvendo delas seu caráter paradoxal.

Schwitters era epilético e introvertido. Seu trabalho cria um jogo enigmático, ao provocar associações perturbadoras. Carrega uma tensão interior, oscilando entre o abstrato e o real e anunciando a sociedade do desperdício que surgiria no pós-guerra. Obra de um visionário, o verdadeiro realista.