Nelson Freire impecável na execução de Skriábin

O Estado de São Paulo - Segunda-feira, dia 3 de julho de 2006

seg, 03/07/2006 - 11h48 | Do Portal do Governo

Extra dado pelo pianista impressionou mais que o concerto de Rachmaninoff, atração principal da apresentação na Sala São Paulo

Lauro Machado Coelho

Sutileza, elegância, ironia encoberta. Essas foram as qualidades que presidiram à execução, pela Osesp na quinta-feira, na Sala São Paulo, da música incidental para o Burguês Fidalgo, de Richard Strauss, escrita para a versão original de Ariadne auf Naxos. John Neschling teve mão leve na dose exata para construir essa série de bem-humorados pastiches de Lully, Couperin e Rameau; e os músicos da orquestra reduzida utilizada por Strauss mostraram sua qualidade nas diversas intervenções solistas – em especial o violoncelo e o violino, cuja participação é destacada.

É interessante reconhecer, nessa música, temas que reaparecerão no corpo da ópera. E uma delícia a enxurrada de citações – Meyerbeer, Wagner, Verdi, o próprio Strauss do Don Quixote – na cena do banquete, coroada por uma daquelas valsas que são a especialidade do autor do Cavaleiro da Rosa, que a Osesp tocou com exuberância particular. Uma excelente introdução ao belo programa apresentado no concerto de quinta-feira.

O tom sereno, de introvertido misticismo, a música de envolvente tonalismo fazem do Salmo 23 – escrito em Israel em 1989 – uma das peças mais acessíveis e comoventes de Almeida Prado. A transparência na escrita para a orquestra imensa, colorida por um uso muito sugestivo das percussões – inclusive o cincerro, que remete à idéia do rei pastor -, e o uso expressivo da harpa, o instrumento bíblico por excelência, responde por passagens orquestrais, o prelúdio, o interlúdio, de intenso lirismo, que visam à recriação do clima bucólico.

São de grande dramaticidade o recitativo e arioso centrais, em que a voz do barítono – Rodrigo Esteves, vibrante, em grande forma – é emoldurada pela trompa, violoncelo, harpa e tímpanos. Mas o cerne emocional da peça está no dueto em que Almeida Prado faz o Davi maduro e sofrido, rei de Israel, dirigir a Deus a sua súplica com o menino que ele foi um dia – delicadamente interpretado por Caíque Meira Ronqui, do Coral Infantil da Osesp. Composição extremamente amadurecida, de um músico que atingiu pleno domínio de seus recursos, o Salmo 23 foi realmente o ponto alto desse concerto.

Sem os atrativos melódicos do nº 2 ou a perfeição técnica e expressiva do nº 3, o Concerto nº 4 em Sol Menor, op. 40 – que Nelson Freire decidiu tocar em vez do prometido nº 2 de Prokófiev – é o mais irregular dos concertos para piano de Serguêi Rachmáninov. Após um Allegro em que as idéias mais interessantes são confiadas à orquestra, e não ao solista, Freire obteve bons resultados no Largo, em que perpassa a citação da canção popular Three Blind Mice. É claro que, entregue a um pianista como Nelson Freire, o op. 40 obteve execução de grande polimento; e Neschling e a Osesp o secundaram de forma apaixonada – embora nem sempre tenha sido irrepreensível a sincronia piano-orquestra. Mas o momento mais convincente da apresentação de Nelson foi a impecável execução da peça de Skriábin que ele deu em extra.