Museu do Futebol: a experiência da palavra

Folha de S. Paulo

ter, 29/09/2009 - 8h44 | Do Portal do Governo

Visitar o Museu do Futebol, como afirmaram 98% dos entrevistados em pesquisa, é “visitar um museu de história” 

Repetimos a lenda e o delírio que o futebol desencadeia em cada relato que fazemos de uma partida, tenha ela ocorrido hoje ou há 50 anos. Pouco importa se o jogo foi visto pela TV, ouvido pelo rádio ou lido em uma notícia de jornal. Na cabeça de quem o imagina, ele reaparece límpido como uma verdade absoluta, repassada de geração em geração.

É a força expressiva da tradição oral, da palavra, que serviu perante a história para perpetuar a existência dos contos e dos povos, muito antes da invenção da imprensa ou da imagem eletrônica. O jogo nos faz viver, em renovado feitio, algo que impregna nossa vida afetiva.

O Museu do Futebol comemora hoje seu primeiro aniversário. Comemora com palavras que o descrevem, tal qual este texto. Ou com a algazarra das palavras de seus quase 400 mil visitantes. Um deles, Mario Moutinho, reitor da Universidade Lusófona de Lisboa, ao entrar na Sala das Copas, disse em alto e bom som: “Este é o museu da palavra!”.

Então, seria esse um museu da palavra? Sim, afirmou o reitor, porque as imagens fotográficas ou em movimento incitam os visitantes a um desabrochar de percepções. E de falas.

Como numa babel de gerações, em que netos indagam a avós, filhos a pais e vice-versa. O Museu do Futebol, com mais de 1.500 imagens e seis horas de vídeos expostos, comemora essa herança comum, passada pela tradição oral, num país tão falto e escasso da valorização dessa memória.

No museu estão expostas as imagens que percorreram o imaginário idílico da nação desde 1896, quando o filho de ingleses Charles Miller aqui aportou trazendo na mala uma bola e um manual de regras.

Para além dos grandes vultos, feitos memoráveis e datas solenes, o museu também conta uma outra história: aquela narrada por hábitos, costumes, atitudes, vestimentas e gestos de um povo, ano a ano, década a década.

Visitar o Museu do Futebol, como afirmaram 98% dos entrevistados em pesquisa, é “visitar um museu de história”. Ou, como disse o presidente da Fifa, Joseph Blatter: “Este não é um museu sobre o jogo de futebol, mas sobre o mais importante no futebol: o povo que o pratica. Este não é um museu, é um lugar onde se vive”.

O pensamento de Blatter deve se somar ao ensinamento (que norteia o projeto educativo do museu) de Anísio Teixeira, que, nos anos 30, prescreveu: “A escola deve se transformar em um centro onde se vive, e não em um centro onde se prepara para viver”. O futebol é, à distinção do modelo médio da escola ainda vigente, um lugar onde se vive -no campo, na rua, na arquibancada e, independentemente do lugar físico, na palavra.

Exatamente com a frase “o futebol é o campo da palavra” se iniciou, em 2005, o projeto curatorial que iria tomar forma e conteúdo nas entranhas do estádio do Pacaembu, em São Paulo: o Museu do Futebol, idealizado pelo governador José Serra e realizado pela Fundação Roberto Marinho, com recursos do governo do Estado, da prefeitura e da iniciativa privada, via lei federal de incentivo à cultura.

A concepção desse museu-escola produziu frutos reconhecidos aqui e no exterior, com matérias no “New York Times” e no “Le Monde”.

O que surpreende o visitante não é a tecnologia de ponta ou as atividades interativas, mas o romper com o olhar vetusto e esperado de um museu. O espaço pensado para deixar solto o desejo libertário em cada visitante, estimulando uma inventiva própria, um gozo intelectual -aliás, título do livro de Jorge Wagensberg, diretor do Museu de Ciências CosmoCaixa de Barcelona e reconhecido educador.

“Se pode falar de outros gozos da mente, mas chamo de “gozo intelectual” o que ocorre no momento exato de uma nova compreensão ou de uma nova intuição. Algo, portanto, além do estímulo, da conversação ou da compreensão necessários à aquisição de um conhecimento. Como se a complexidade infinita concebida por uma mente (a do artista que cria) pudesse alcançar uma segunda mente (a do artista que contempla), dentro de uma realidade finita -princípio que está relacionado com a solidão intrínseca do gozo intelectual, o conceito mais relevante do conhecer.”

Cada visitante do Museu do Futebol é encarado como artista em potencial. Em certo sentido, o visitante é o próprio conteúdo do museu: ele se nutre do museu e o nutre. Assim, amplia as próprias fronteiras do conhecimento, permitindo a fruição do espaço de visitação num gozo intelectual, próprio e sensível. O grande trunfo do Museu do Futebol é estimular a experiência de transformar imagens num campo, fértil, de palavras.

Leonel Kaz é curador e diretor-executivo do Museu do Futebol.