Mulheres já mandam em 10% dos presos

O Estado de S. Paulo - São Paulo - Sexta-feira, 4 de fevereiro de 2005

sex, 04/02/2005 - 9h47 | Do Portal do Governo

Para diretoras de presídios em São Paulo, detentos homens dão menos trabalho

Luciana Garbin
Colaborou: Silvana Guaiume

A assistente social Giselda Morato Costa lembra do horário exato. Eram 14h38 do dia 18 de fevereiro quando recebeu o convite para dirigir a Penitenciária Feminina do Butantã. Aceitou, com o compromisso de se apresentar já no dia seguinte. O que não sabia era que naquela mesma hora uma rebelião destruía o presídio e havia três funcionários reféns. Só descobriu o motim mais tarde, pouco antes de tomar o ônibus de Presidente Prudente para São Paulo. Hoje, ela é uma das 30 mulheres que dirigem presídios no Estado.

Juntas, têm a responsabilidade de tomar conta de 11 mil presos – 7.687 homens -, cerca de 10% da população carcerária. São advogadas, psicólogas, pedagogas ou assistentes sociais que fizeram carreira no ‘sistema’ – muitas vezes para espanto de amigos e parentes – e têm ocupado um número cada vez maior entre os 129 cargos de direção. Isso desde julho de 2000, quando a primeira delas tomou posse na direção da Penitenciária de São Vicente.

‘Havia preconceito por se tratar de atividade perigosa, difícil, mas as mulheres são diretoras eficientes tanto em presídios femininos quanto masculinos e de alta segurança’, diz o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que ontem almoçou com as 30 diretoras em Sumaré. ‘São mais fortes para superar obstáculos, mais resistentes à adversidade.’

Para o secretário da Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, elas ainda são mais sensíveis aos problemas dos presos, sabendo ser duras quando necessário. E mais atentas a desperdícios. Luzes acesas sem necessidade, por exemplo, nem pensar. Prova é que a penitenciária que apresentou menor custo de manutenção em 2003 foi a de Serra Azul, gerida por uma diretora.

‘As mulheres não abaixam a cabeça tão fácil, são fortes para enfrentar problemas e têm força para segurar qualquer coisa, seja administrar penitenciária, ser mãe ou qualquer outro trabalho’, completa a modelo e apresentadora Ana Hickmann, que também participou do almoço para receber título de embaixadora das Ações Governamentais em Parceria com o Terceiro Setor.

As diretoras garantem que, apesar dos estigmas, o dia-a-dia na cadeia é tranqüilo. ‘Para muita gente é estranho eu ter feito carreira no sistema, mas não é tão problemático quanto as pessoas pensam’, diz Edenir Isabel Ferreira Nogueira, diretora-geral da Penitenciária 1 de Reginópolis. Aos 47 anos, ela comanda 820 presos, 110 agentes de segurança, 65 de escolta e vigilância, além do corpo técnico. ‘Fuga e rebelião são exceções, não rotina.’

Há, porém, quem já tenha passado momentos difíceis. Meses depois de entrar para o sistema, há 19 anos, Célia Regina Silva Martins, de 43, passou 25 horas como refém no presídio de Presidente Venceslau. Na época, trabalhava com outras três mulheres, que saíram depois do motim. Célia continuou. ‘Não posso dizer que não deixou seqüelas’, diz ela, hoje diretora do Centro de Ressocialização de Presidente Prudente. ‘No início transferia o sentimento pelos que se rebelaram a todos os presos, mas cada um é um. Não se pode achar que todo mundo é bandido.’

Para muitas, o sistema está no sangue. ‘Claro que já pensei: O que estou fazendo aqui? Por que não estou advogando? Mas acho que é o destino da gente’, diz a diretora-geral do Centro de Ressocialização de São José dos Campos, Eliana Maria Capostagno, de 44 anos, 17 de sistema, iniciados na Casa de Detenção. ‘As presas brincam: Mas a senhora não arruma namorado, não quer filhos? E eu respondo: Com que tempo? E para que filho se já tenho 175?’ O trabalho, garante, é muito gratificante. ‘Quando volto de viagem é sempre: Puxa vida, onde a senhora estava? É muito gostoso ouvir isso de pessoas que cometeram delitos.’

O cuidado com detalhes – de flores a esmero na limpeza – é outra característica apontada nos centros dirigidos por mulheres. ‘Sempre tem uma ou outra relapsa até com a higiene pessoal, mas digo: Gente, pelo amor de Deus, essa é a casa de vocês, precisa estar sempre limpa’, conta Eliana.

Na hora de escolher se é mais fácil cuidar de presos ou presas, elas concordam: homens respeitam mais e dão menos trabalho. ‘Mulher é mais melindrosa, carente, quer mais atenção’, diz Eliana. ‘Elas mostram mais sua dor’, completa Giselda. ‘Se dá desespero, ela vai gritar, chorar, se rebelar.’

Giselda, aliás, foi a diretora que assumiu no ano passado o presídio do Butantã com alas destruídas, vidros quebrados, colchões queimados. E hoje, após um ano de trabalho e quase 20 de sistema, diz que acredita cada vez mais na capacidade do ser humano em se modificar. E o importante é dar cidadania a todos. Na prática, isso significa investir em ações como o Miss Penitenciária, concurso que elegeu a presa mais bela do Estado e terminou com um show de Fábio Júnior. ‘Foi um marco’, comemora. ‘E continuamos a favor de tudo que eleve a auto-estima das pessoas.’

Tabuada é castigo e refeição tem oração

Luciana Garbin

Quando Maria de Lourdes Kerche do Amaral, de 46 anos, veste roupa vermelha, os 230 presos que ela dirige no Centro de Ressocialização de Jaú se preparam: é sinal de que a ‘mulher’ está brava. E aí pode vir de tudo. Ela já deu, por exemplo, prova de tabuada de castigo para preso que não fez serviço direito e cancelou festa de Natal porque a irmã de um detento entrou com maconha na visita. Lá não existe revista de parentes. Desde que, em assembléia, os presos se comprometeram de que suas famílias não entrariam com armas ou drogas.

‘Eles chegam, eu já digo: aqui é jogo limpo. Tudo o que eu puder fazer para ajudar vou fazer, desde que colaborem’, conta a devota de Santa Beatriz e mãe de duas filhas que estudam em outra cidade. Separada do marido desde que ele pediu que escolhesse entre a cadeia ou ele, Maria de Lourdes mora no próprio presídio apenas com os gatos Hugo e Victor. Do lado de fora, há também um dog alemão, Igor. E trata os detentos como ‘meninos’, ‘filhos’ ou até ‘crianças’. Entre eles, há de tudo: reincidentes, ex-policiais, gente com 3 anos de pena, outros com 20. Todos convivem juntos; até estupradores.

‘Ela é como uma mãe sem muito açúcar para que o filho não vire safado, sem vergonha’, diz Wanderley Machado, preso por tráfico e feliz por ter trocado ‘cadeias de facção 100% ódio’ por Jaú.

Antes das refeições, ela faz os presos rezarem o Pai Nosso e a Ave Maria – em outubro, 15 fizeram primeira comunhão. Há alguns dias, autorizou um campeonato de futebol com a condição de que cantassem o Hino Nacional. Se ocorre um problema, chama todos à quadra para discutir. Em casos pontuais, entra na cela – cada uma abriga 12 detentos – e tranca à chave até resolver.

‘Se for procurar tudo isso em teoria, não existe. Mas minha função é provocar o que há de bom nos meninos.’