Memorial da América Latina: 20 anos

Folha de S. Paulo - 18/03/2009

qua, 18/03/2009 - 12h05 | Do Portal do Governo

Artigo do presidente do Memorial da América Latina, Fernando Leça

“O memorial é um ato por meio do qual todos nós nos assumimos como latino-americanos”, resumiu o antropólogo Darcy Ribeiro

FINS DE 1988. O canteiro de obras ao lado do terminal rodoviário Barra Funda fervilha. Mais de mil trabalhadores, entre peões, operários especializados e engenheiros, estão envolvidos na execução do novo marco arquitetônico de São Paulo, concebido pelo genial Oscar Niemeyer, então aguardado para mais uma visita de acompanhamento.
Nesse ambiente frenético de trabalho, chega também um grupo liderado pelo antropólogo Darcy Ribeiro, que vai logo dizendo: “O Memorial [da América Latina] é o primeiro gesto brasileiro que realmente chama os latino-americanos a congregar, um ato por meio do qual todos nós nos assumimos como latino-americanos.

Com ele, São Paulo será a capital cultural da América Latina, com nossa cultura latino-americana olhando para si mesma, com orgulho de si e se cultivando”. Incumbido de pensar as grandes linhas de atuação do memorial, dava, já ali, uma definição que era uma resposta a quaisquer dúvidas sobre a condição de São Paulo como lócus e protagonista de uma missão integradora dessa natureza.

Diria, mais tarde, com sua graça proverbial, o dramaturgo Dias Gomes: “Isto aqui não é um memorial, é um “futurial'”. Chega Niemeyer. Com a simplicidade de sempre, tom baixo de voz, mas algo solene, diz: “Este memorial da América Latina é a obra que mais tem aquilo de que gosto de fazer: surpresa arquitetural e plástica.

É um conjunto arquitetônico bem resolvido. Mas mais importante é o empreendimento em si, que se coloca a tarefa de congregar os povos latino-americanos”. Estimulado pelo mestre e amigo, Darcy emenda: “É uma mão estendida dos brasileiros em direção aos povos vizinhos. Um povo se marca no tempo como civilização pelas obras de arte voltadas para a beleza. Isto aqui vai ser a cara da civilização brasileira”.

O memorial está completando 20 anos. Ao ser inaugurado, em 18 de março de 1989, o conjunto arquitetônico -com suas formas curvas em concreto armado como que suspensas no ar- foi considerado um resumo da obra de Niemeyer. Era realmente uma nova referência para São Paulo e para a arquitetura brasileira o complexo que se erguera em extensa área de 84 mil metros quadrados na antiga várzea da Barra Funda. A escultura da mão com as veias abertas transformou-se em um símbolo, apreciado por centenas de milhares de visitantes.

O memorial foi uma iniciativa generosa do governo paulista, que continua empenhado em proporcionar-lhe as condições e os meios necessários ao objetivo maior do estreitamento da amizade entre os povos latino-americanos, celebrado pela difusão do conhecimento e das artes. Vinte anos depois, continua sendo uma instituição singular na América Latina, cumprindo sua função de integrar as manifestações culturais da região. No campo artístico, recebeu o Balé Nacional de Cuba -por duas vezes- e grandes orquestras, como a Filarmônica de Israel, regida por Zubin Mehta, além de ter sido palco de conjuntos orquestrais brasileiros, a exemplo da Jazz Sinfônica, e de grandes nomes da música popular, como Mercedes Sosa, Astor Piazzola, Libertad Lamarque, Caetano Veloso, Tom Jobim, entre muitos outros. Em sua galeria de artes plásticas foram organizadas mostras antológicas como as de Rugendas, Fernando Botero, Juan Rulfo e Guayasamín.
Entre os visitantes ilustres que passaram pelo memorial há personalidades da maior projeção, como presidentes, ministros, escritores e intelectuais de todas as áreas, citando-se, entre os primeiros, Bill Clinton e Fidel Castro, além da passagem do papa Bento 16.

Entre as iniciativas mais recentes destinadas a ajudar na consolidação da sua missão integradora, destacamos o Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, que vai para a sua quarta edição; o Festival Ibero-Americano de Teatro, na segunda; a criação da Cátedra Memorial da América Latina, em parceria com as três universidades públicas paulistas (USP, Unicamp e Unesp) e prestes a receber a chancela da Unesco; e o lançamento da Biblioteca Virtual da América Latina, com o apoio da Fapesp.

Além disso, há inúmeros cursos de extensão, seminários, conferências e debates -de muitos dos quais resultam publicações especiais, valendo ainda lembrar a edição da revista bilíngue “Nossa América”, agora com circulação trimestral. Como se vê, razões para come- morar não faltam.

FERNANDO LEÇA, 68, advogado, é presidente da Fundação Memorial da América Latina. Foi deputado estadual em dois mandatos, chefe da Casa Civil do Estado de São Paulo (governo Mário Covas) e secretário do Emprego e Relações do Trabalho (gestão Alckmin).