Lina Bo Bardi/ Crítica – Livro traz trajetória conflituosa de artista

Folha de S.Paulo - Sábado, 20 de setembro de 2008

sáb, 20/09/2008 - 15h19 | Do Portal do Governo

Folha de S.Paulo

Existem livros que adquirem uma importância histórica tão grande que se torna imperativa a sua reedição. É o caso deste “Lina Bo Bardi”, reimpresso após 15 anos de sua primeira publicação. Quando da sua morte em 1992, Lina era um personagem polêmico no meio arquitetônico e cultural brasileiro, mas se conhecia pouco de sua trajetória e obra. Os projetos do Masp e do Sesc Pompéia, em São Paulo, despertavam grande interesse em várias gerações de arquitetos e, no entanto, pairava certo mistério sobre a trajetória de Lina, então idosa e com saúde debilitada. Após sua morte, o Instituto Lina Bo e P. M. Bardi organizou no Masp, em 1993, uma exposição da sua obra, baseada em uma primeira sistematização de seu arquivo, lançando simultaneamente este livro e um vídeo com depoimentos, entrevistas e ricas imagens dos seus trabalhos. Configurava-se pela primeira vez uma narrativa histórica de referência. Correndo o risco de cometer anacronismos, a estrutura dessa trama foi composta por depoimentos e textos escritos por Lina ao longo de sua vida. A partir de então, exposição, livro e vídeo circularam por diversas cidades brasileiras para depois seguir para o exterior, com edições em outras línguas. Em paralelo, o instituto disponibilizou uma razoável parte do seu acervo para consultas de pesquisadores, fomentando um exame aprofundado na forma de dissertações, teses, artigos e novos livros.

Trajetória combativa

Muitos desses estudos revelaram o quanto conflituosa e combativa foi a sua trajetória. A partir de 1947, Lina e Bardi haviam constituído o Masp como um vigoroso pólo de uma ação de modernização cultural, combinando exposições de arte com uma escola de desenho industrial e propaganda (o Instituto de Arte Contemporânea) e uma ação editorial contundente (a revista “Habitat”). Tendo se transferido para Salvador no final da década de 50, Lina desenvolveu lá uma ação semelhante, implantando os museus de Arte Moderna e de Arte Popular como centros culturais dinâmicos e propositivos. Pesquisou a cultura popular nordestina e concebeu um moderno que fosse a sua transformação e não sua extinção, numa experiência interrompida com o golpe de 1964. Após alguns anos de reclusão voluntária dedicando-se ao Masp e a trabalhos de cenografia de teatro, Lina reapareceu com o Sesc Pompéia, abrindo uma terceira fase de grande impacto na arquitetura brasileira contemporânea. Participando com uma posição forte em um ambiente pouco afeito a aceitar diferenças (como é o da arquitetura no Brasil), Lina enfrentou um dissimulado preconceito de gênero. Era arquiteta mulher, ainda que se definisse antifeminista, e teve que lidar com as reservas da esquerda arquitetônica com o passado de militância fascista de seu marido (ao qual contrapunha seu engajamento com a Resistência italiana). Foram embates que marcam os textos reunidos no livro, que juntos acentuaram o processo de construção de um mito ao seu redor. Talvez isso exigisse algum acréscimo ao livro em futuras edições, contextualizando e ponderando afirmações marcadas pelo calor da luta e que algumas vezes não contribuem para a precisão histórica que as pesquisas posteriores a sua publicação trouxeram à tona. Nada disso desmerece este livro, que apresenta magistralmente as obras de arquitetura, design, cenografia, gráfica, ilustração e pintura de Lina Bo Bardi, revelando a amplitude de sua produção e a atualidade das questões que ela coloca para a cultura contemporânea.

RENATO ANELLI é professor titular e coordenador do programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da USP-São Carlos

LINA BO BARDI

Organizador: Marcelo Carvalho Ferraz

Editora: Imprensa Oficial

Quanto: R$ 140 (340 págs.)

Avaliação: ótimo