Laboratório paulista sintetiza moléculas da cura

O Estado de S. Paulo - Domingo, 27 de junho de 2004

seg, 28/06/2004 - 10h22 | Do Portal do Governo

Em quatro anos, pesquisadores do Centro de Toxinologia Aplicada já depositaram seis patentes sobre moléculas com potencial farmacêutico

ALESSANDRO GRECO

No armário da sala do cientista Antônio Carlos Martins de Camargo, diretor do Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), repousa a imagem do deus da cura grego Asclepius – ou Esculápio – com seu cajado que traz uma cobra enrolada. ‘Ele fazia suas visitas sempre com esse cajado e a cobra era o símbolo da cura.’

Daqui alguns dias, a imagem irá para a entrada do CAT, localizado no Instituto Butantã. Nada mais adequado. O centro foi criado em 2000, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), como um de seus dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid). Já depositou seis patentes de moléculas com potencial para ser transformadas em remédios e, nos próximos dias, vai fazer mais duas com moléculas que mostraram atividade antitumoral em animais.

Uma delas, vinda da esponja do mar, mostrou-se eficaz contra tumores de mama – uma esponja do mar já deu à ciência o antiviral AZT, usado no tratamento da aids, desenvolvido a partir de uma toxina natural que afugenta predadores. A outra, uma molécula presente na saliva do carrapato, foi eficiente contra células tumorais e não contra células normais.

‘Essa é uma vantagem em relação aos quimioterápicos, pois eles agem em todas as células e não somente nas tumorais’, afirma Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, coordenadora do grupo do laboratório de bioquímica do Instituto Butantã que fez as descobertas somente depois de três anos de pesquisa.

Outro trabalho bastante rápido, quatro anos até o depósito da patente, feito em 2003 pelo mesmo grupo, foi a descoberta das propriedades terapêuticas do veneno de uma espécie de taturana (Lonomia obliqua) muito comum no Sul do Brasil. ‘Há uma proteína presente nas cerdas dessa taturana que pode ser usada como anticoagulante para, por exemplo, prevenir trombose’, afirma Ana.

Mas essa foi só a ponta do iceberg.

Recuperação – Os pesquisadores verificaram que a proteína protegia também contra a morte da célula. ‘Ela poderá ser usada na recuperação de tecidos danificados do corpo, por exemplo, no caso de enfarte do coração’, comenta Ana.

Mas nem sempre a ciência anda em uma velocidade tão alta. A última patente depositada pelo CAT, há aproximadamente um mês, tem uma história de quase um século e começa com Vital Brasil, fundador do Instituto Butantã.

Para tratar de pacientes com dores muito fortes, como as causadas pelo câncer, Brasil utilizava o Soluto Crotálico, um remédio à base de veneno de cascavel (Crotalus terrificus) altamente diluído.

‘Temos relatos da década de 30 e 40 sobre o Soluto Crotálico, mas não houve depois nenhum estudo experimental’, afirma Yara Cury, do Laboratório de Fisiopatologia do Butantã, que decidiu confirmar experimentalmente o trabalho de Vital. No início da década de 90, ela começou a fazer estudos na área e mostrou que o veneno tinha mesmo atividade analgésica, mas faltava ainda descobrir qual era a molécula responsável por um efeito de analgesia 600 vezes mais potente que o da morfina, mais duradouro e que não criava dependência física.

Impasse – O impasse foi resolvido com a criação do CAT e a chegada de um espectrômetro de massa, aparelho fundamental para determinar a estrutura molecular da substância. Como a molécula responsável pelo efeito analgésico é somente uma parte muito pequena do veneno, descobri-la sem equipamento adequado e equipe treinada equivale a procurar uma agulha no palheiro.

Aliando a força da máquina ao trabalho de Yara, de sua pós-graduanda, Gisele Picolo, e do pesquisador japonês Katsushiro Konno, foi possível descobrir a molécula responsável pela analgesia e depois sintetizá-la em laboratório.

Parceria garante investimento em pesquisa

Todos os estudos do Centro de Toxinologia Aplicada (CAT) são feitos com o Consórcio Farmacêutico Nacional (Coinfar), composto pelos laboratórios Biolab-Sanus, União Química e Biosintética. Segundo o cientista Antônio Carlos Martins de Camargo, diretor do centro, o trio investiu R$ 3 milhões e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), R$ 18 milhões até agora para fazer as quatro instalações e montar as equipes – duas dentro do Instituto Butantã, uma no campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro e outra no de Rio Preto. Mais alguns milhões foram investidos para pagar os salários dos pesquisadores.

Mas o dinheiro não será suficiente para transformar as descobertas em riqueza com a criação de produtos para o mercado – considerando que não seja encontrado nenhum empecilho científico no meio do caminho. ‘O custo para levar a pesquisa de uma dessas moléculas patenteadas até o fim, ou seja, a produção do medicamento, seria de aproximadamente US$ 50 milhões’, afirma Camargo. ‘Precisamos de mais parceiros de indústria’.

Além da boa vontade das empresas, será preciso resolver a questão da patente. ‘Ela tem participação de uma entidade pública, a Fapesp, e nenhuma empresa farmacêutica vai entrar nessa pesquisa se não tiver a garantia de que não vai precisar entrar em uma licitação para poder fazer uso da molécula. Isso está sendo resolvido entre a Fapesp e o Coinfar agora’, comenta Camargo.

Pelo menos uma entidade de financiamento brasileira, o BNDES, já se animou com os projetos, mas não gostou da burocracia que viu. Segundo Camargo, eles querem garantias de que o que trabalho não vai ficar preso no ‘imbróglio do serviço público’ – um pedido que cabe justamente ao governo atender – ou não.

Pelo menos em um caso a situação já está ‘resolvida’. O CAT assinou no fim do ano passado um contrato de parceria com a multinacional Merck Sharp&Dohme para sua patente da proteína endoA – descoberta por Camargo -, que tem uma função importante na formação do córtex cerebral e na transmissão da dor.

A primeira patente, depositada pelo CAT em 2001, do veneno da jararaca, está em fase mais avançada de pesquisa e já deu origem a outras duas patentes.

‘Os evasins são hipertensivos com menos efeito colateral que os medicamentos disponíveis no mercado’, diz Camargo, referindo-se a uma classe de moléculas presentes tanto no veneno quanto no cérebro da serpente.

O mecanismo de ação foi entendido com base na descoberta dos primeiros anti-hipertensivos naturais, os BPPs, na década de 60. Eles serviram de modelo para a síntese do Captopril, remédio muito usado como anti-hipertensivo.

Hoje, entre os 17 evasins conhecidos, 4 foram escolhidos por suas qualidades como anti-hipertensivos e estão sendo testados por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). (A. G.)