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Valor Econômico - Sexta-feira, 9 de março de 2007

sex, 09/03/2007 - 12h08 | Do Portal do Governo

Do Valor Econômico

 É pelo que armazena do lado de fora que o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, se define. Sacolas de roupas baratas e quinquilharias lotam o acervo de seu guarda-volumes, especialmente aos sábados, dia de visitação gratuita e comércio cheio nas ruas vizinhas, José Paulino e 25 de Março. Em seu primeiro ano de funcionamento, o museu, na região central da cidade, já se transformou, entre as 2.016 instituições museológicas do Brasil, naquela que recebe o maior número de visitantes. É um número modesto – 570 mil, desde 20 de março do ano passado – se comparado aos grandes museus do mundo (ver tabela na pág. 14). Mas é um feito para o panorama dos museus brasileiros, que têm, relativamente, poucos turistas estrangeiros a alavancar sua visitação. No Louvre, o maior deles, 67% dos 7,5 milhões anuais de visitantes são turistas estrangeiros.

Na estratégia de popularização do Museu da Língua não faltaram parcerias com as associações comerciais da região, para levar os balconistas a conhecer suas instalações e propangandeá-las aos consumidores. Também saiu ganhando a Pinacoteca do Estado: a vizinhança com o museu é considerada um dos motivos do aumento de sua visitação. Juntos, o Museu da Língua e a Pinacoteca, têm cinco vezes o último número disponível de freqüentadores do Masp, antes líder inconteste.

Dirce, costureira de Vila Velha (ES), “8 ª série incompleta”, deposita suas sacolas e aguarda a vez no elevador do Museu da Língua Portuguesa. Desce no primeiro andar, onde a exposição de “Grande Sertão: Veredas” estava em seus últimos dias. O irmão bancário, que veio a São Paulo meses atrás, disse que ela não poderia perdê-la.

Levantamento do museu indica que 80% das pessoas que passaram pela exposição da obra de Guimarães Rosa até 28 de fevereiro não a leram. E, no entanto, se encantam. Dirce pára nas frases – “Eu quase nada sei, mas desconfio de muita coisa”; “Riobaldo, a colheita é comum, o capinar é sozinho” . E diz ter ficado curiosa para ler o livro, “apesar de já ter visto a minissérie, aquela em que Bruna Lombardi era Diadorim”. Ela cai na brincadeira que a curadora Bia Lessa fez com os banheiros, alusão à ambigüidade sexual de Diadorim, e não se intimida ao se dar conta de que está no masculino. Lá assiste a um vídeo, em que o narrador relata a experiência do pai com jagunços à época em que, engenheiro responsável pela construção de um açude no sertão do Rio Grande do Norte, ia buscar o pagamento dos operários de carro em Natal. “No trajeto de volta, meu pai via surgirem os jagunços, de um lado e do outro, ao longo do trajeto. Estavam ali para garantir que o dinheiro chegaria ao destino.” Falava o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, responsável pela reforma do prédio do museu. Dirce não sabia quem era, mas pára para ouvir.

A falta de intimidade com os autores cuja obra é explorada pelo museu não atemoriza os visitantes. O diretor Antonio Sartini arrisca uma explicação. “As pessoas se sentem donas do acervo, que é a língua viva.” Conta que um dia recepcionou um grupo de estudantes adolescentes. Encontrou muitos deles aborrecidos com a obrigação imposta pela escola. Ao fim da visita, um deles, ao vê-lo, lembrou-se dos vídeos dos “rappers” da periferia de São Paulo falando “os mano e as mina”. “Agora não vou deixar mais ninguém dizer que falo errado. Tá no museu.”

Os adolescentes são os visitantes mais controversos do museu. A monitora Ana Paula Portela, mestranda em letras na USP, “Nonada” (palavra com que Guimarães inicia o parágrafo de 553 páginas de “Grande Sertão”) tatuado no pulso esquerdo, diz que os de escola particular são os mais difíceis. Eles sempre passam pelo “Beco das Palavras”, um dos lugares mais visitados do museu. Numa sala escura, os visitantes juntam sílabas movimentando as mãos meio metro acima de uma mesa eletrônica. Um adolescente só sossega quando consegue formar todos os nomes da genitália feminina que lhe vêm à cabeça. No painel aparecem a origem grega de uns, a origem quicongo (de um dos povos africanos trazido ao Brasil) de outros.

“Muitas vezes, me procuram para dizer que as pessoas falam muito alto no museu ou para se queixar de que há muitas crianças”, diz o diretor. Na exposição do “Grande Sertão”, por exemplo, havia trechos do livro escritos na areia. “Às vezes recebia 1.500 crianças numa única tarde. É normal que algumas também quisessem escrever na areia.” Mas a exposição já havia sido programada para essas “interatividades”. Um funcionário cuidava, todo dia, de refazer as palavras borradas nas páginas de areia.

Durante essa exposição, Sartini recebeu a visita de diretores de museus estrangeiros dizendo que não ousariam deixar tijolos soltos, como ali, porque monitores e seguranças seriam fatalmente atingidos. “Nunca houve nada parecido aqui”, afirma. Sartini lembra-se de um único caso de vandalismo. Um garoto escreveu o nome no elevador, mas a escola pagou o prejuízo.

Uma professora de biologia que acompanha um grupo de estudantes de uma escola particular do interior de São Paulo desconfia da validade da iniciativa. “Até filme legendado eles têm preguiça de ler, que dirá se interessar por este museu.” Carlo Mário do Espírito Santo, professor de português que comandava o mesmo grupo, discorda. “Depois que eles vêm aqui prestam mais atenção à letra das músicas e à etimologia das palavras, interessam-se mais por poesia e querem saber detalhes da vida dos autores.”

Se há tamanho interesse pela língua, por que as notas de português no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) têm piorado? O professor oferece uma resposta: “A língua, para esses jovens, não é um valor. O valor para eles é a imagem, a tecnologia. Gostam daqui porque o museu se apropria dessa linguagem que eles dominam para valorizar a língua e a literatura”.

Na Praça da Língua, espécie de planetário em que uma antologia da literatura brasileira é projetada no teto e recitada por artistas e personalidades, é difícil identificar um jovem indiferente ao longo dos 20 minutos de projeção. O único barulho são os risos com a recitação do “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria” (Carlos Drummond de Andrade). No fim, quando os poemas aparecem iluminados no piso, uma adolescente repete um trecho de “Verdade Vergonha” (Gregório de Mattos), musicado pelo cantor de “rap” Rappin Hood: “O que falta nesta cidade? Vergonha.”

Outro diz que gostou de “Garoa do Meu São Paulo” (Mário de Andrade). Uma terceira cita “Canção do Exílio” pela voz que a recita (Chico Buarque), sem mencionar o autor (Gonçalves Dias). Uma secretária passeia sobre poemas iluminados repetindo: “Aonde anda a onda?” (Manuel Bandeira).

Consultora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a historiadora Adriana Mortara de Almeida, autora de alguns dos poucos estudos comparativos sobre a freqüentação de museus no país, reconhece que ninguém fica indiferente ao Museu da Língua Portuguesa. Diz que a instituição tem um poder de atração mais amplo do que os museus de arte, mas o público, afirma, ainda é elitizado. Suas pesquisas mostram que as pessoas que freqüentam esse e outros museus são mais ou menos as mesmas. A partir deste ano, o Museu da Língua Portuguesa estreará no “Observatório de Museus” um projeto do Iphan e poderá ter a ampliação de seu público mais bem dimensionada.

Os dados colhidos por uma pesquisa feita pelo museu comprovam a impressão. Apesar dos sábados sacoleiros, apenas 1% dos freqüentadores são das classes C e D, enquanto 30% são da classe A. Esses segmentos, segundo essa pesquisa, representam, respectivamente 18% e 30% da população da cidade de São Paulo. A esmagadora maioria (70%) está cursando ou já completou o curso superior.

Nos outros dias, é difícil avistar alguém fora do figurino de classe média. A psicóloga que está de malas prontas para Portugal faz sua segunda visita ao museu: “Quando chegar lá vão me perguntar sobre a diferença das línguas.” Nas filas que se formam para usar os totens do espanhol, francês e inglês, nos quais um terminal mostra as palavras em português que derivam dessas línguas, as pessoas saem dizendo: “Eu sou poliglota e não sabia.” Nos totens das línguas africanas passam “babaca”, “muvuca”, “bagunça”, “cochilo”, “sacana”, “moleque”. Ao lado, o terminal de línguas indígenas informa que o Brasil tem um povo (canoé, no sul de Rondônia) cuja língua ainda não foi traduzida.

No terminal eletrônico do português falado no mundo, avó, mãe e filho clicam em Guiné-Bissau e aparecem nativos falando. Comentam como eles enchem mais a boca ao pronunciar as palavras e quanto o sotaque é mais fácil de compreender do que o de Portugal.

José, o sorveteiro que faz ponto entre o museu e a Pinacoteca conta que já foi várias vezes ao museu, com e sem a família. Gostou mais do filme que passa no terceiro andar. Lá assistiu a um apanhado sobre a história da língua que hoje é falada por cerca de 200 milhões de pessoas em oito países. Do que ele lembra? “Da narração da Fernanda Montenegro.” E do que mais? “De tudo, que é muito bonito.” Depois que inauguraram o museu, é no sábado de manhã – “precisa ver a fila ali dobrando o quarteirão” – que ele vende mais picolé.

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