Histórias de uma nova vida

O Estado de S.Paulo - Domingo, 12 de Junho de 2005

seg, 13/06/2005 - 11h29 | Do Portal do Governo

Nos anos 70, de cada 10 crianças com câncer, 8 morriam. Hoje, apenas 2. O diagnóstico da doença deixou de ser sentença de morte

Eduardo Nunomura

Duas mil crianças brasileiras vão morrer de câncer neste ano. Há duas décadas, esse número segue inalterado. A diferença é que graças aos avanços da medicina hoje se fala de sobreviventes. Nos anos 70, o porcentual de cura era baixíssimo para as crianças e os adolescentes. De cada dez pacientes, oito morriam. Hoje, dois vão a óbito.
Com isso, os sobreviventes são hoje milhares. E todos com histórias para contar, como Giovanna Maira, no segundo ano de canto lírico da Universidade de São Paulo e vítima de retinoblastoma quando era bebê. Ou Elier Hortolan, que superou a perda da perna esquerda amputada em 1962 por causa de um tumor ósseo. Ou o universitário Bruno Camargo Pinheiro, que aos 6 anos teve a medula autotransplantada, numa técnica arriscada à época, mas agora vive feliz e cuja única preocupação é conquistar uma namorada.

O diagnóstico do câncer deixou de ser uma sentença de morte há muito tempo. É por isso que a legião de sobreviventes não pára de crescer. Tumores antes letais agora são curáveis e deixam seqüelas bem menores. Só que a doença não deixou de avançar também. Novas neoplasias ainda pouco compreendidas pelos pesquisadores mantêm elevado o número de mortes e seqüelas.

Crianças com leucemia tinham 15% de chances de sobreviver três décadas atrás. Tratamentos como transplantes, radioterapia e quimioterapia mais precisas e menos lesivas elevaram a porcentagem de cura para até 80%.

Mas há outros cânceres cujos tratamentos ainda são pouco eficazes. Um deles, o glioma difuso de tronco cerebral, responde mal à radioterapia e ainda pior à quimioterapia convencional. A maioria das vítimas morre nos 18 primeiros meses. Os que sobrevivem carregam seqüelas, como retardo mental ou cegueira. Um dia, os médicos apostam, pacientes com essa neoplasia resistirão por mais tempo. E talvez não carreguem marcas dela.

‘Antes, a nossa preocupação era salvar a vida a qualquer custo. Hoje queremos curar com qualidade’, afirma Vicente Odone Filho, responsável do Instituto de Tratamento do Câncer Infantil, no Hospital das Clínicas da USP. ‘Hoje, dou muito valor ao que o paciente quer fazer. Não é só a cura que deve ser eficiente, mas também a reinserção do paciente na sociedade’, acrescenta Antonio Sergio Petrilli, do Grupo de Apoio à Criança e ao Adolescente com Câncer (Graac), o centro que mais atende neoplasias infantis no Brasil.

Décadas atrás, o câncer era tratado por hematologistas, os médicos que se preocupam com as doenças do sangue e seus órgãos produtores. Foi nos anos 70 que os pediatras entraram para valer nessa área e elevaram a preocupação para outro nível: as crianças vão sobreviver, mas a que preço? Não existe só uma neoplasia, mas várias delas.

Leucemias, tumores ósseos, do rim, linfomas, todos são abrigados num único nome: câncer. Por esse motivo, a doença sempre foi cercada de um estigma muito forte. No passado, beirava o extremo. Câncer em crianças era raríssimo – médicos ignoravam ou não diagnosticavam a doença nelas. Quando isso acontecia, pais desesperados simplesmente abandonavam os filhos nos hospitais.

ESFORÇO E TALENTO

‘É muito difícil ouvir de um médico que a cura de sua filha era que ficaria cega’, recorda Valquíria Maria da Rosa Silva, mãe de Giovanna Maira. O diagnóstico de um grave tumor nos olhos foi dado 17 anos atrás pelo médico Luiz Fernando Lopes. Ela chegou a pensar em não deixar que a operação fosse feita. O marido, Luiz Augusto Silva, convenceu a mulher do contrário. Foram quatro anos de tratamento, com 21 sessões de quimioterapia. E Giovanna sobreviveu para cantar, também graças a Lopes, do Hospital do Câncer. ‘Ele é o culpado pelo que sou’, brinca a hoje universitária Giovanna.

O médico aconselhou os pais: ‘Dêem um teclado. A música ampliará o caminho dela.’ E como. Aos 3 anos, ela ganhou seu primeiro teclado. Aos 10, subiu ao palco pela primeira vez, no Paço Municipal de Osasco. Na adolescência, começou a cantar e a se apresentar, incluindo em programas de rádio e TV. Há poucos anos, decidiu ganhar dinheiro com o seu dom. Toca e canta em eventos, sobretudo casamentos.

Apesar do talento e esforço, Giovanna ainda tem de enfrentar muitos obstáculos. O último vem da Universidade de São Paulo, onde ingressou em canto lírico em 2004. A escola não tem rampa para cegos nem lhe oferece aula de piano clássico por falta de professores. E a USP já rejeitou comprar um programa que converte partituras em braile. Só ela utilizaria, foi a justificativa. Cada nota musical da 9ª Sinfonia de Beethoven teve de ser ditada por colegas para que fizesse a transcrição para a língua dos deficientes visuais. ‘É uma luta constante’, desabafa a jovem. Por essa razão, ela evita comentar que foi curada de um câncer na infância. Já basta um preconceito.

TRAUMA

As seqüelas do câncer são físicas ou emocionais. Por ser tão desgastante a batalha pela cura, é muito comum que os pacientes e a família passem por momentos difíceis mesmo anos depois da alta. Uma menina com uma cicatriz que a obriga usar maiô, por exemplo, pode ficar traumatizada pelo resto da vida. Nada é desprezível. Bruno Camargo Pinheiro às vezes chora por não conseguir namorar. Acha que pode ser culpa da leucemia linfóide aguda, que o deixou com 30% menos cabelos.

‘Tenho medo de chegar nas meninas, fico pensando que elas podem tirar sarro de mim’, diz o tímido universitário de Publicidade, hoje com 19 anos, mas aparência de um adolescente de 15. Em 1993, ele sofreu um transplante autólogo (sua medula foi retirada para passar por um processo de purificação e devolvida sem o câncer ao seu corpo) no instituto da USP. O drama da recuperação foi tão grande que os pais de Bruno até hoje o protegem quanto podem. ‘Não tenho como pagar o que os médicos e meus pais fizeram por mim.’

‘O mais difícil depois da cura é superar a seqüela’, atesta o hoje aposentado Elier Hortolan. Aos 58 anos, ele é o mais velho sobrevivente da doença tratado no Hospital do Câncer. Quando tinha 14, após uma pancada numa mesa, começou a sentir dores tão insuportáveis que em dois meses já teve sua perna esquerda amputada. Era a única solução à época. Para superar o trauma, lutou para conseguir um emprego em que a falta de uma perna não fizesse diferença. Virou desenhista.

‘A fase mais difícil já passei. Não há por que querer esconder o que passou’, afirma Hortolan. ‘Antes não dizia que perdi a perna por um câncer. Era uma doença tão grave que não comentava. Agora, a cura nos faz ficar para contar história.’ Que o digam a sua mulher, Rosa Helena de Oliveira, com quem está casado há 34 anos, seus três filhos e cinco netos.