Heróis na tragédia

Isto É - 1 de agosto de 2007

seg, 30/07/2007 - 11h11 | Do Portal do Governo

Isto É – 1 de agosto de 2007

Na quarta-feira 25, o sargento Lealdo Alves Machado, 33 anos, aproveitava sua primeira folga em uma semana para estudar para a prova semestral dos bombeiros. “Quais os principais riscos em um incêndio?”, lia no manual da corporação. A resposta ele conheceu na prática uma semana antes: calor e fumaça excessivos, acúmulo de gases inflamáveis e tóxicos, perigo de desabamento. Foram as lições da mais grave ocorrência da qual participou, o resgate das vítimas do acidente com o avião da TAM, na terça-feira 17, em São Paulo. Naquele dia, ele estava de plantão quando recebeu um chamado de socorro na região de Congonhas. “Vai para lá com a escada porque tem gente querendo pular”, ouviu do outro lado da linha. Em 20 minutos, ele e um companheiro se posicionavam em frente ao prédio em chamas para resgatar uma das vítimas que ameaçavam se jogar. “O que mais me alegra é saber que preservei pelo menos uma vida”, diz ele, triste por lembrar que duas outras pessoas já tinham pulado quando ele chegou.

Machado, que trabalhou durante 26 horas consecutivas entre os dias 17 e 18, e os outros 231 bombeiros que participaram da operação fizeram um pouco de tudo: ajudaram a apagar o incêndio, reviraram escombros atrás de vítimas e, com a ajuda de agentes da Defesa Civil, encaminharam mais de 40 corpos ao Instituto Médico Legal (IML), que logo montou uma força-tarefa para identificar os mortos. São esses profissionais que arriscaram suas vidas, puseram o dever em primeiro lugar e se tornaram os heróis anônimos da maior tragédia da aviação brasileira.

“Parecia um filme que eu já tinha visto antes”, diz o capitão Valdir Pavão, 41 anos. Há 19 anos na profissão, ele é especializado em resgate em estruturas desmoronadas, como o prédio de cargas devastado pelo avião. Ele trabalhou no acidente da TAM em 1996, mas desta vez as dimensões do desastre o impressionaram. Mesmo treinado para enfrentar situações deste tipo, ele também se emocionou: “Existe o momento em que dá um aperto no peito”, diz o capitão, que trabalhou 24 horas seguidas após o acidente. Ao todo, 70 equipes trabalharam no primeiro dia do desastre, com 25 viaturas. Atualmente, permanecem no local 40 homens e sete viaturas para remover escombros e continuar a varredura em busca de fragmentos humanos e partes do avião.

Lado a lado com os bombeiros, num trabalho menos visível, mas igualmente importante, atuam os agentes da Defesa Civil. São eles que isolam a área, interditam imóveis com problemas e organizam a logística numa operação deste porte. O coronel Jair Pereira, 38 anos, estava de folga quando viu pela televisão a aeronave em chamas. Imediatamente, foi para a central de comunicação do órgão. Lá, requisitou agentes funerários para transportar os cadáveres e depois seguiu para o local do desastre. Ele e os colegas ajudaram os bombeiros na primeira triagem e numeração dos corpos. Em geral, numa ocorrência importante, atuam entre 15 e 20 agentes da Defesa Civil, mas neste dia o número era muito maior. “Lidar com a morte é sempre difícil. Na hora, nós temos de dar uma resposta à situação, não dá para pensar. Mas depois a gente reflete e sente pelas famílias que perderam pessoas queridas”, diz ele.

A emoção também tem marcado o trabalho dos funcionários do Instituto Médico Legal (IML), responsáveis pela identificação dos 199 mortos no acidente. Alguns chegaram a chorar ao encontrar as famílias das vítimas que visitaram o IML na terça-feira 24. Os 250 profissionais do órgão correm contra o tempo para amenizar a dor de esposas, maridos, filhos, pais, avós, primos, tios – mais da metade das vítimas ainda não foi identificada. Ninguém precisou ser convocado e houve funcionários que suspenderam as férias para voltar ao trabalho.

Milton José Soares, 61 anos e 31 de profissão, é um dos 46 médicos legistas envolvidos na força-tarefa. No dia do acidente auxiliou na retirada dos cadáveres, depois passou dois dias colhendo depoimentos de familiares para ajudar na identificação das vítimas e desde então dá expediente no prédio do IML para onde os corpos são levados. Trabalha das 7h às 23h, mas não reclama: “O cansaço é grande porque são muitos corpos. Mas nada é maior do que a satisfação de dar a uma família o direito de um enterro digno ao seu ente querido”, diz ele.

VILÃO NA POLÍCIA, HERÓI NOS BOMBEIROS

Ele foi um dos chefes da operação Castelinho, que, em maio de 2002, matou 12 suspeitos de pertencerem a uma facção criminosa, no pedágio da estrada que liga a rodovia Castelo Branco à cidade de Sorocaba (SP). Esta é uma das ações mais criticadas da PM nos últimos anos e o processo criminal ainda corre em Itu. O que o tenente Henguel Ricardo Pereira, 36 anos, não poderia imaginar é que cinco anos depois ele passaria de policial vilão a herói dos bombeiros, função que exerce há quatro anos. Na terça-feira 17, ele foi o primeiro membro da corporação a chegar ao local do acidente do vôo JJ 3054 e conseguiu retirar do terceiro andar do prédio da TAM Express a primeira vítima com vida da tragédia.

“Fiz de tudo na polícia, mas, por questões políticas, de uma hora para outra inverteu tudo, acabei saindo, respondendo a processo, me sentindo mal”, diz ele. “Nos bombeiros me sinto muito mais realizado.” Ele só se deu conta do tamanho da tragédia quando voltou para casa, 16 horas depois, e ligou a tevê. “Comecei a chorar sozinho vendo as imagens. Enquanto se está trabalhando a adrenalina é tão grande que você não se dá conta dos riscos”, diz o tenente, que não sai de casa sem a imagem de Santo Expedito na carteira. “A única cena que não me sai da cabeça é daquela jovem que se jogou antes que eu pudesse subir para resgatá-la. Conseguiria tirá-la de lá com vida se ela esperasse um pouco mais.”