Getino, um sonhador com os pés na terra

O Estado de São Paulo - Quinta-feira, dia 13 de julho de 2006

qui, 13/07/2006 - 11h16 | Do Portal do Governo

Co-diretor de A Hora dos Fornos diz como filmes podem forjar a identidade

Luiz Carlos Merten

Afinal, quantas salas de cinema existem no País? O espectador que começou, na segunda-feira, a freqüentar o 1º Festival do Cinema Latino-Americano de São Paulo, arrisca-se a ficar confuso. Na abertura do evento, o secretário de Estado da Cultura, o cineasta João Batista de Andrade, fez uma comparação que definiu como forte – a ocupação das nossas salas por Hollywood pode ser comparada à Guerra do Iraque -, mas é, basicamente, verdadeira. O problema é que ele disse que existem, 1.600 salas no Brasil. Na terça, na primeira mesa que integra o ciclo de debates – Novo Cinema Latino-Americano -, Nelson Pereira dos Santos disse que eram 1.500 salas. Seguinte a falar, o secretário do Audiovisual, Orlando Senna, anunciou uma correção que terminou por confundir ainda mais. Ele disse que, no ano passado, haviam pouco menos de 1.900 salas e que, este ano, elas devem, estar em torno de 2 mil. Mais de cem salas inauguradas num ano? Só se o cinema passou a ser a prioridade um em termos de investimento dos empresários brasileiros dos ramos de comunicação e diversão. E o problema, de qualquer maneira, não é só o número de salas – é a localização e o número de poltronas, que se refletem no preço do ingresso.

Confusões à parte, e autoridades têm a obrigação de ser precisas, o festival começou com alta participação do público, prova de que há muito interesse pelo assunto. Só na terça, primeiro dia para o público, 3 mil pessoas assistiram aos filmes – 1.500 no Grande Auditório do Memorial, as restantes no CineSesc e na Sala Cinemateca. E o festival está trazendo a São Paulo figuras raras. O repórter tinha ótimas referências de Octavio Getino, co-diretor, com Fernando Solanas, de um filme mítico, La Hora de los Hornos – que integra a programação em tradução literal, A Hora dos Fornos. O crítico José Carlos Avellar diz que Getino não faz nariz de cera e vai logo aos fatos. O crítico e dirigente do É Tudo Verdade, Amir Labaki, acrescenta que é objetivo, centrado e, por isso, a parceria com Solanas deu certo – um, Getino, tinha os pés no chão; o outro, Solanas, era o poeta. Getino é realmente uma figura que impressiona. Calmo, articulado, não tem os arroubos adolescentes de muitos colegas que ainda parecem estar nos anos 1960. Como ele diz, “adolescentes reclamam; homens maduros sonham”.

Getino coordena atualmente o Observatorio Mercorsur Audiovisual, em Buenos Aires. O Observatório foi criado para discutir e ampliar possibilidades de integração cinematográfica entre os países do Mercosul e de além fronteiras, propondo parcerias com os ibero-americanos. Há alguns anos, Getino esteve em São Paulo, convidado pelo Itaú, para analisar as possibilidades de um Observatório Cultural que o banco pretendia criar. O banco criou um instituto com seu nome, o que não é a mesma coisa. A vida de Getino tem sido a de um saltimbanco. Nascido na Espanha, ele integrou, na Argentina, nos anos 1960, o lendário Grupo Cine Liberación, que acreditava no cinema como ferramenta para conscientizar as massas e mudar o mundo. No começo dos anos 70, num dos breves períodos de redemocratização pelos quais passou o país, ele dirigiu o Ente de Cualificación, a censura de lá. Liberou filmes importantes que, por motivos ideológicos, haviam sido proibidos pelos militares. Um novo golpe levou-o ao exílio.

Seu amigo Fernando ‘Pino’ Solanas convidou-o para viver e trabalhar com ele em Paris. Getino preferiu ir para o Peru, onde ficou seis anos, depois mais seis no México e uma estada no Chile, ainda durante a ditadura de Pinochet, quando desenvolveu um programa alternativo de comunicação e informação que desafiava a censura do regime pelo simples fato de circular, de maneira quase clandestina, em igrejas e associações. Durante muito tempo Getino trabalhou na clandestinidade. Ele trocou o cinema pelo vídeo, cujas possibilidades estéticas e ideológicas – pelo baixo custo e mobilidade, que o tornam um meio democrático – tem discutido em livros e desenvolvido na prática.

Em 1966-68, Getino e Solanas fizeram A Hora dos Fornos. Documentário político de intervenção, obra de resistência, o filme discute a dependência econômica e cultural da Argentina e aponta para um cinema engajado na mudança social e política. A Hora dos Fornos passa domingo, no Memorial. Possui a fama de ser um filme ‘peronista’. Getino faz a ressalva – “O peronismo é um movimento muito amplo, um dos maiores e talvez o maior criado na América Latina. Vai do centro-esquerda à centro-direita (com Menem) e com razão costuma ser definido como populista, mas de maneira geral é comprometido com as mudanças sociais.” Getino reviu A Hora dos Fornos há cerca de dois anos, quando Solanas lhe pediu que o ajudasse a formatar o filme para lançamento em DVD. “Continua muito forte, um pouco porque as condições na Argentina ficaram ainda piores, mas também porque a vontade de fazer cinema, de criar novas formas, nos impulsionou a ousar, do ponto de vista formal.”

Ele acha importante discutir o cinema da América Latina, mas também diz que se trata de uma utopia. “Qual cinema latino-americano? Não existe um. México, Brasil e Argentina produzem 85% do cinema feito no continente e apenas 15% são praticados entre todos os demais países.” A diversidade é a tônica e Getino acredita que o cinema deve buscar canais alternativos para circular – o Observatório Cultural tem esse objetivo; seu site é www.oma.recam.org -, pois os filmes são, simultaneamente, espelhos nos quais se refletem nossa imagem e uma importante atividade econômica. A questão da imagem é fundamental. Getino compara o cinema latino ao passaporte. “Sem foto, o passaporte não vale. Sem produção audiovisual, nós também não temos identidade.”

(SERVIÇO)1.º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo. Exibição de A Hora dos Fornos. De Fernando Solanas e Octavio Getino. Memorial da América Latina (733 lug.). Av. Auro Soares de Moura Andrade 664, tel. 3823-4600. Dom., 19 h. Grátis.