Figuras selvagens em linhas agressivas

O Estado de S. Paulo

ter, 02/03/2010 - 8h15 | Do Portal do Governo

Estação Pinacoteca exibe 140 obras gráficas e 4 desenhos de Wilfredo Lam

Figura maior da pintura cubana e um dos mais importantes modernistas latino-americanos, Wilfredo Lam (1902-1982) também foi um exímio gravurista, como se pode ver na mostra inaugurada no sábado na Estação Pinacoteca. Com 140 obras gráficas e quatro desenhos da antológica série Fata Morgana, a mostra Lam: A Obra Gráfica acompanha a produção madura do artista por quase quatro décadas e perpassa diferentes técnicas e temáticas, tendo sempre em vista a íntima relação entre sua produção pictórica e gravada e o intenso diálogo estabelecido com a literatura.

Marcada por um forte sincretismo, sua obra mescla elementos surrealistas a uma visão bastante particular de sua terra e culturas de origem. Sua própria história é exemplar no que se refere à mestiçagem e ecoa ao longo de toda a sua produção. As estranhas e potentes figuras biomorfas que povoam suas telas são tributárias de um conjunto amplo de referências, uma mescla de elementos, símbolos e referências às culturas africana, latina e oriental (ler ao lado). Segundo o curador Paulo Venâncio Filho, é essa síntese de elementos culturais, que talvez só Cuba e Brasil tenham, que coloca Lam em posição de destaque entre os grandes artistas modernos do continente.

Esse caráter simbólico de sua obra e suas convicções políticas de esquerda ajudam a explicar por que o artista é até hoje cultuado pelo regime cubano. As obras em exibição na Estação Pinacoteca, no entanto, não provêm da ilha caribenha, tendo sido cedidas por uma fundação parisiense com a colaboração do filho do artista, Eskil Lam.

Abrindo a mostra estão quatro das ilustrações realizadas pelo artista para o poema Fata Morgana, de André Breton. Feita em 1941, a obra foi proibida pelo regime de Vichy e destruída durante a ocupação da França, restando apenas cinco exemplares após o término da Segunda Guerra Mundial. Servindo como marco cronológico inicial da exposição, esses desenhos sinalizam claramente a influência de Picasso sobre o artista.

Os desenhos também marcam o movimento de retorno do artista ao seu país natal e a redescoberta da paisagem e do imaginário tropical após quase 20 anos de mergulho na tradição e vanguardas europeias. Esse reencontro com as origens, no entanto, não se traduz de forma alguma em visão idealizada, estilizada ou mitificadora de uma natureza generosa e complacente. Seu trópico é “ágil e agressivo”, “nervosamente insano, brusco e agitado”, sintetiza Venâncio Filho. A série Annonciation, feita em 1967 para acompanhar o poema homônimo do amigo Aimé Césaire ilustra bem o que o curador chama de “caráter seco, antissentimental, lírico agressivo de sua obra”. Mulheres mascaradas, seres híbridos, meio homens, meio bichos que se contorcem e se mesclam em posições impossíveis, que são perfurados por lanças e espinhos pontiagudos, mas que seguem caminhando povoam seus telas e trabalhos sobre papel.

Os títulos dos trabalhos muitas vezes também concorrem para tornar o resultado denso, afiado. É caso de Oiseaux Cannibales, conjunto de 13 águas-fortes realizadas na Itália com o auxílio do impressor Giorgio Upiglio, que desenvolve nos anos 60 uma técnica que permite a Lam trabalhar de maneira bastante particular a gravura, dando à cor uma independência em relação à figura. Essa utilização da cor como um campo de fundo, que tensiona e reaviva a linha gravada está presente em várias séries da exposição, como as litografias para ilustrar Le Regard Vertical, escrito por Dominique Agori em 1973.

Mas nem sempre ele vai optar por esse caminho, que julga demasiado próximo da pintura, como destaca o crítico Jacques Leenhardt em texto publicado pela Caixa Econômica por ocasião da versão carioca da mostra, no ano passado. Em vários trabalhos, Lam vai optar por explorar o caráter cortante, definidor do desenho e das marcas do gravado sobre a superfície. Um exemplo disso é a série L”Herbe Sur les Pavés, belas e intensas águas-fortes realizadas no ano de sua morte e que parecem ilustrar com perfeição a definição sintética ensaiada pelo curador da mostra: “São linhas selvagens, que desenham figuras selvagens.”

Um Contestador

Poesia africana: Filho de uma descendente de escrava africana e de um chinês, que já tinha na época 84 anos, Lam nasceu na província cubana de Sagua la Grande em 1902.Em 1916 segue para Havana para continuar seus estudos e alguns anos depois, em 1923, viaja para a Espanha. Ali se dedica aos estudos das artes clássicas e torna-se aluno de Fernando Álvarez de Sotomayor y Zaragoza, curador do Museu do Prado e professor de outro mestre do surrealismo, Salvador Dalí.

Desiludido com a morte precoce da primeira mulher e do filho, de tuberculose, e com a derrota na Guerra Civil Espanhola (Lam combate ao lado dos republicanos), ele migra para a França. Se nesse período Picasso reinava sobre todos, sua ascendência é ainda mais marcante sobre o pintor cubano. É com uma carta de apresentação endereçada ao mestre andaluz que Lam parte para Paris e é ele quem o introduz nas rodas vanguardistas. Também é com Picasso que ele chega ao mercado norte-americano, por meio de uma exposição conjunta realizada em Nova York, em 1939.

Conquista rapidamente uma posição de destaque na cena parisiense, estabelecendo vínculos com mestres como o surrealista André Breton. Com a ocupação alemã, parte para o sul da França e retorna ao Caribe, reencontrando aí forte fonte de inspiração.

“O que descobre em Cuba é um povo refém de um sistema e de um modo de vida degradados”, explica o crítico Jacques Leenhardt, sublinhando o caráter contestador e militante da obra de Lam. Para isso, cita declaração do próprio artista: “Eu poderia ter sido um bom pintor da Escola de Paris, mas me sentia como um caracol fora da concha. O que ampliou verdadeiramente a minha pintura foi a presença da poesia africana”, teria dito ele.

Serviço
Lam: A Obra Gráfica. Estação Pinacoteca. Largo General Osório, 66, Luz, 3335-4990.
10 h/18 h (fecha 2.ª). R$ 6 (sáb. grátis). Até 2/5