Festas da Sinfônica de São Paulo em Zurique

Folha de S. Paulo - 4/11/2003

ter, 04/11/2003 - 9h34 | Do Portal do Governo

Regida por John Neschling, a orquestra é ovacionada no concerto mais importante da temporada européia

Arthur Nestrovski, enviado especial a Zurique


Folha de S. Paulo – Terça-feira, 4 de novembro de 2003

A ovação era previsível, depois do sucesso em Genebra no sábado. Mas ninguém esperava que fosse tão cedo. Mal a Osesp tocou o último acorde do ‘Mandarim Maravilhoso’ de Béla Bartok (1881-1945), a platéia da Tonhalle em Zurique veio abaixo, surpreendendo até o maestro John Neschling, que há anos convive com a serenidade suíça.

Já é estranho sentar numa sala onde sentou Johannes Brahms (1833-1897). Mais estranho ainda ver as caras conhecidas da orquestra paulista no palco. Mas o mais estranho e o mais bonito de tudo foi perceber a confiança da Osesp na Tonhalle, assim como no Victoria Hall em Genebra. Um ano depois da consagração no Avery Fischer Hall (NY), eles agora parecem prontos para tocar onde quer que seja, com a naturalidade conquistada de um conjunto de nível internacional.

O concerto em Genebra foi diferente. Grandezas de Villa-Lobos (1887-1957) e festas de Ottorino Respighi (1879-1936) testavam o limite sonoro da estreita sala vitoriana, carregada de reboco e grená. A intimidade é uma virtude, mas as exuberâncias da música às vezes pedem mais espaço e mais ar, e o auditório, com toda a sua história, parecia pequeno para a orquestra.

A Tonhalle, de sua parte, beneficia muito essa projeção cada vez mais aberta, só ampliada pela importância da ocasião. Ampliada para os dois lados do espectro: fortíssimos espetaculares nos trombones, pianíssimos virtuosísticos dos violinos.

Sem falar na percussão arrebentando -nada menos que dez percussionistas nas ‘Festas Romanas’ de Respighi. Ajudados por algumas dezenas de pares de pés, batendo o compasso nordestino do ‘Mourão’ de Guerra-Peixe.
Sua contraparte de alto arrojo foi o ‘Mandarim’ de Bartok, uma obra-prima do modernismo, mas nem por isso muito tocada. É difícil para a orquestra e instigante para a platéia; e não é qualquer sinfônica que se aventura a provocar a imaginação desse modo. Pontos para a coragem da Osesp, que aposta com consciência neste repertório.

Somando audições lá e cá, o ‘Concerto nº 2’ para piano e orquestra de Villa-Lobos vai nos educando rapidamente para suas belezas caóticas. E Jean-Louis Steuerman, sem desconfiar decerto das angústias de seu amado Botafogo, transformou o concerto num espetáculo de texturas e contrastes. Em retrospecto, os acordes alterados no final da ‘cadenza’ sugeriam nada menos que a invenção de um piano brasileiro.

Fazer depois a ‘Tocata’ do suíço Othmar Shoeck foi um agrado charmoso para os zuriquenhos.

Charme também é o que não falta para o maestro Neschling, quando as coisas correm tão bem como aqui. Seduziu os genebrinos em francês; e atacou de alemão na Tonhalle, com o mesmo gosto. Nada disso é trivial, num concerto que exibe as honras cosmopolitas da Osesp.

Só a gente sabe como é difícil fazer música, como é difícil fazer qualquer coisa no Brasil. O espanto dos suíços não pode ser maior, então, do que o nosso, frente à evidência do que se fez em meia dúzia de anos. Não é por nada que Roberto Minczuk teve de voltar ao palco dez vezes em Nurembergue, e Neschling teve de abanar para a platéia, que não queria ir embora em Zurique.

Talvez isso explique a comoção final do ‘Prelúdio’ das ‘Bachianas Brasileiras nº 4’. Não era música: era vida. Não era só uma orquestra, embora sem essa a gente jamais saberia.