Eu, voluntária

Revista Época - Edição 540 - 22/09/2008

sáb, 20/09/2008 - 16h10 | Do Portal do Governo

Revista Época

Acompanhei o atendimento no Escreve Cartas por dois dias. Um deles em Itaquera e o outro em Santo Amaro. Sempre me identificava aos usuários como jornalista. Percebi uma semelhança nas duas unidades do Poupatempo: as pessoas que pedem ajuda aos voluntários normalmente se colocam de maneira submissa, como se elas fossem menos cidadãs por ter problemas com a escrita. Uma senhora na faixa dos 60 anos, de aparência humilde e vestido de chita, de repente se pôs na minha frente. Os cabelos compridos e grisalhos, puxados para trás num rabo-de-cavalo, deixaram à mostra seu rosto marcado por rugas profundas. “Filha, desligaram o meu telefone. A moça do outro balcão falou que eu tenho que ligar para um monte de números. Mas não sei fazer isso”, disse. Fiquei arrasada com a sua angústia.

Àquela altura, eu já havia conversado com uma porção de voluntários do Escreve Cartas e ouvido dezenas de histórias interessantes. Nenhuma delas, porém, tinha tido o impacto do olhar aflito daquela mulher. Era o meu dia de estréia como voluntária na unidade de Santo Amaro. E era justamente a minha ajuda que ela pedia. Tive vontade de pegá-la pela mão e sair correndo para resolver o problema. Percebi logo que essa atitude não seria adequada. Sugeri, então, que ela pedisse para a atendente anotar o número do telefone em um papel e me procurasse em seguida. A senhora de rugas profundas partiu. Não voltou mais. Sua ausência começou a me atormentar. Será que ela conseguiu ou desistiu de tentar?

As fragilidades humanas se impõem aos voluntários do Escreve Cartas de maneiras distintas. Dificuldades com a leitura e a escrita são apenas uma parte delas. Muitas pessoas procuram o serviço porque precisam desabafar. Enquanto ditam as frases que alguém colocará no papel, expõem o que as atormenta. Confiam nos voluntários como se fossem seus velhos amigos. Às vezes, eles funcionam como psicólogos. “Vim para São Paulo tentar uma vida melhor. Mas estou aqui há quatro anos e não consegui comprar nem um sofá”, afirma uma mulher que foi a Santo Amaro enviar uma carta para um programa de TV. Outra, de uns 50 anos, foi botar no correio uma caixa com mantimentos para o filho que está preso no interior de São Paulo. Dizia estar feliz porque o rapaz estava prestes a sair da cadeia. Junto com a comida, ela enviou uma cartinha carinhosa. “Estou mandando o doce de goiaba de que você tanto gosta. Mas não tirei as sementes”.

Há aquelas que usam o serviço só porque é de graça – e tratam os voluntários como se eles fossem servidores pagos com o dinheiro dos cofres públicos. “Já que eu não consegui o que precisava no Poupatempo, vou mandar uma carta. Escreve aí…”, disse, em tom agressivo, uma mulher que carregava a neta no colo.

O dia-a-dia no Escreve Cartas é assim. Os voluntários se emocionam e se irritam. Às vezes, até se divertem com as histórias que ajudam a contar.

Solange Azevedo