Estado de Direito e reforma agrária

O Estado de S. Paulo - 11/3/2003

ter, 11/03/2003 - 9h35 | Do Portal do Governo

Alexandre de Moraes


A Constituição federal concedeu à União a competência privativa para desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural, entendendo-se reforma agrária como o conjunto de notas e planejamento estatais mediante intervenção do Poder Público na economia agrícola com a finalidade de promover a repartição da propriedade e renda fundiária.

O governo do Estado de São Paulo, porém, vem realizando, em convênio com o Incra, o maior programa de reforma agrária já visto neste Estado, tendo entregue mais de 6 mil títulos referentes à regularização fundiária, bem como encaminhado à Procuradoria-Geral do Estado o correspondente a 367.550 hectares para o ajuizamento de ações discriminatórias (discussão de áreas devolutas), para a realização de futuros assentamentos.

Nesse mesmo esforço para a realização de reforma agrária no Estado, o governo de São Paulo realizou vistorias em 372 fazendas, num total de 514.874 hectares, dos quais 275.271 hectares em conjunto com o Incra, no Pontal do Paranapanema. Além disso, durante os anos de 1995 a 2002 foram assentadas, somente em terras estatais, mais de 5 mil famílias.

Desde o segundo semestre do ano passado, por determinação do governador Geraldo Alckmin, iniciou-se na Região Noroeste do Estado o maior esforço concentrado de vistorias já realizado em São Paulo, com o objetivo de identificar propriedades improdutivas passíveis de desapropriação para fins de reforma agrária. Todos esses dados obtidos estão subsidiando a elaboração de Relatórios Agronômicos de Fiscalização, a serem enviados ao Incra.

No ano passado, foi investido mais de R$ 1 milhão em projetos de desenvolvimento nos assentamentos do Pontal do Paranapanema, além da destinação, entre recursos federais e estaduais, de R$ 30 milhões para o equacionamento dos problemas existentes na região.

Consciente, porém, da necessidade de auxiliar as famílias assentadas, o governo do Estado de São Paulo mantém 115 profissionais do Instituto de Terras, fundação ligada à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, para o atendimento direto a 4.800 famílias assentadas na região do Pontal, e 9 mil famílias assentadas em todo o Estado são atendidas pelos serviços do referido instituto nas áreas de assistência técnica, extensão rural e apoio ao desenvolvimento econômico.

O Estado de São Paulo vem cumprindo, dentro de seu rol de atribuições, a missão constitucional de promoção e repartição da propriedade e renda fundiária, mediante os requisitos constitucionais previstos, não podendo permitir, porém, que a finalidade da reforma agrária seja deturpada e utilizada para a realização de invasões desarrazoadas e condutas arbitrárias e ilícitas.

Os movimentos sociais não podem ser deturpados e transformados em paladinos de um inexistente direito de invasão da propriedade privada e produtiva e, conseqüentemente, ser utilizados como verdadeiro escudo protetor da prática de atividade ilícita, sob pena de total consagração do desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.

Nesse sentido, o movimento reivindicatório dos trabalhadores sem terra deve ser realizado dentro do absoluto respeito ao princípio da legalidade, não podendo obstar o exercício, pelo restante da sociedade, dos demais direitos fundamentais – entre eles o direito à propriedade privada e à segurança jurídica. Configura-se, portanto, claramente abusiva a realização de invasões, sob o falso pretexto de exercício de direitos inexistentes e com flagrante desrespeito às limitações legais, consagradas até mesmo na própria Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em seu artigo 29.

O exercício dos movimentos reivindicatórios de quaisquer grupos somente será razoável se respeitar os demais direitos fundamentais do restante da população, pois esse respeito consiste em exigência democrática e necessária para a evolução da educação de cidadania, caráter básico, como salientado por Montesquieu, de qualquer governo republicano. Devemos relembrar que as democracias modernas, garantindo a seus cidadãos uma série de direitos fundamentais que os sistemas não-democráticos não consagram, buscam, como lembra Robert Dahl, a paz e a prosperidade da sociedade como um todo.

A razoabilidade no exercício dos movimentos sociais deve, portanto, evitar a ofensa aos demais direitos fundamentais, o desrespeito à consciência moral da comunidade e a ofensa à segurança jurídica, visando, em contrapartida, à esperança fundamentada de que se possa alcançar um proveito considerável para todos, resultante na prática democrática do direito de reivindicação.

Alexandre de Moraes é secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, professor de Direito na USP e do Mackenzie, doutor e livre-docente em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo