Erudito popular

Folha de S. Paulo - Segunda-feira, 12 de abril de 2004

seg, 12/04/2004 - 9h08 | Do Portal do Governo

Público que não freqüenta salas de concertos estréia em séries com ingressos a preços populares

Marcos Dávila, free-lance para a Folha

Casacos de peles, carros importados e gente com o nariz em pé. O contexto imaginado pela desempregada Percinia Silva Neto, 30, quase a fez desistir de assistir a seu primeiro concerto de música erudita, na portentosa Sala São Paulo, no centro da cidade. ‘Estava com receio. Passei uma vez na frente do [teatro] Municipal e só tinha bacana’, conta Percinia, que mora no Itaim Paulista, extremo leste da cidade, e levou quase uma hora no trem para chegar à sala de espetáculos, no último dia 28.

Como muitos paulistanos de baixa renda, ela fez seu ‘début’ como espectadora na Sala São Paulo por meio do projeto Concertos Matinais, que neste ano passou a vender ingressos a R$ 1 nas unidades do Poupatempo (na bilheteria, a entrada custa R$ 2). A série de concertos, que acontecem aos domingos, às 11h, tem como objetivo a formação de público, dando acesso a uma população que não tem condições de pagar os outros concertos.

‘Parecia aquele desenho do Walt Disney, mas muito mais bonito’, afirmou a desempregada, depois da apresentação da Orquestra de Câmara da USP, sob regência do maestro Gil Jardim, que também assina a direção artística dos Concertos Matinais. O desenho animado citado por Cecília é o popular ‘Fantasia’ (1940), em que Mickey Mouse aparece como um aprendiz de feiticeiro em um dos episódios, todos sem fala, com ‘hits’ de Bach, Tchaikovsky e Beethoven.

Naquela manhã de domingo, aliás, Beethoven estava no programa da orquestra. E o maestro Jardim aproveitava as pausas para fazer breves comentários sobre os compositores, suas obras e os instrumentos musicais.

‘Não entendi muito bem o que ele falou. Mas não interessa quem fez ou deixou de fazer. A música entra na gente. O importante é a sensação’, diz a desempregada. E o que achou da Sala São Paulo? Ela define em uma só palavra: ‘Fashion’.

A algumas fileiras dali, a aposentada Elza da Silva Rosa, 65, também estava encantada com a sala, na qual pisava pela primeira vez: ‘É linda, um espetáculo’. Elza ficou sabendo do concerto por meio do seu neto, Jonas, 8, que viu um anúncio no Poupatempo. Embora deslumbrada com o lugar, ela apresentou duas críticas: ‘Não tem nenhum folhetinho dizendo o que vai ser tocado’ e ‘não tem sax na orquestra’. A segunda reclamação foi de ordem sentimental, já que seu marido, que já morreu, foi saxofonista da banda da Polícia Militar.

Samba
‘Hoje isso aqui está um samba’, comenta uma senhora com outra, que concorda com a cabeça, no meio de uma grande fila para ver a apresentação do músico Carlinhos Antunes, no Concertos Matinais do último dia 4.
O comentário traduzia a agitação da sala que, naquele dia, recebia um grupo de 180 moradores da periferia de São Paulo. A excursão fazia parte do projeto Cenafoco 2004, que forma líderes comunitários.

‘Gosto mais de samba e rap. Orquestra é mais para classe média e alta, né?’, afirma o estudante Vladimir Silva Costa, 16, que mora em São Mateus. ‘Gastou muito pra fazer isso, né? Mas o dinheiro que gastou valeu a pena. É pra todo mundo, né?’, diz o jovem sobre a Sala São Paulo.

Seu amigo, acompanhando a entrevista, coloca o pé sobre uma mureta da sala e, notando a gafe, rapidamente tira-o dali, exclamando repleto de auto-ironia: ‘É periferia mesmo!’.

Um outro grupo de 22 crianças do projeto Guri, do governo estadual, que dá aulas de música em regiões pobres de Atibaia, também fazia sua estréia na sala. ‘Aqui é muito organizado. Acho interessante porque ajuda muito na cultura do Brasil’, afirma o estudante de violino Wellington Gonçalves, 10, morador de Caetetuba. ‘É o bairro mais pobre de Atibaia’, faz questão de frisar.

Além do Concertos Matinais, há outros projetos na cidade que visam a formação de público. Um deles é o Theatro Municipal Visita, que leva concertos gratuitos a teatros de bairro. Na sexta-feira, dia 2, mais de 1.500 crianças assistiram ao espetáculo musical ‘Pedro e o Lobo’, de Prokofiev, com regência de Daniel Misiuk. O concerto marcou o início de uma turnê que vai percorrer todas as unidades do CEU até 25 de julho.

‘A peça tem um caráter didático ao apresentar cada instrumento às crianças. E 99% delas nunca tinham ido ao Municipal’, afirma a professora Regina Celi de Oliveira, 38, que acompanhou um grupo com 300 alunos de uma escola
municipal na Vila Prudente.

‘As pessoas da periferia não vão muito ao Municipal porque é muito longe e pouco divulgado. Às vezes, a delegacia de ensino dispõe de ônibus, mas nem sempre as datas coincidem’, diz a professora.

Há ainda quem passe na frente do Municipal e faça o sinal da cruz.