Ensaios sobre a arte do movimento

O Estado de S. Paulo

seg, 31/08/2009 - 8h03 | Do Portal do Governo

Em edição bilíngue, Primeira Estação reúne reflexões de dez estudiosos de diferentes áreas sobre a São Paulo Cia. de Dança 

A arte nunca é apenas reflexo imediato de seu contexto. Movimentos artísticos e suas criações simbólicas também “atuam” sobre a visão de mundo dos homens de seu tempo. Um desses círculos virtuosos de transformação em que a arte ganha papel relevante, o surgimento do Ballets Russes, de Diaghilev, é analisado pela antropóloga Lilia Moritz Schwarcz no ensaio intitulado Um Mundo de Pernas para o ar: o Final do Século 19 e o Início de uma Nova Era para as Artes Russas.

Seu texto é um entre dez publicados no livro Primeira Estação, cuidadosamente produzido pela São Paulo Companhia de Dança, dirigida pelas bailarinas Inês Bogéa e Iracity Cardoso. A primeira assina também a organização do volume de capa dura e edição bilíngue, ilustrado com fotos das coreografias já apresentadas (leia ao lado). Com essa publicação – que terá lançamento hoje na Livraria Cultura – a companhia ultrapassa as metas anunciadas: “difundir a dança por meio de produção e circulação de espetáculos; promover formação por meio de projetos educativos e cuidar de registro e memória.”

Síntese 

Primeira Estação vai além porque “produz pensamento” sobre a arte da dança ao convidar especialistas de diferentes áreas para refletir não somente sobre as criações da companhia, mas sobretudo a partir delas sobre o papel da arte. É o que faz Lilia Schwarcz. São 35 páginas de síntese cristalina do cenário europeu num século marcado pela ideia da velocidade, do progresso e dos avanços tecnológicos como o telégrafo, o rádio, as ferrovias e o avião. Em Paris passa a circular o primeiro e único táxi a gasolina em meio aos outros puxados por cavalos. Um tempo que pede a construção de um novo imaginário. “Nesse mundo afeito a novas ideias e utopias a arte viria a cumprir papel essencial”, escreve a historiadora em seu texto que conecta Chekhov e o Teatro de Arte de Stanislavski a Freud e às invasões Napoleônicas.

“A dança ainda abre pouco espaço para a reflexão de pensadores de outras áreas”, argumenta Inês Bogéa sobre essa iniciativa editorial. “Lilia coloca num prisma a virada cultural do século 19 ao desvendar o diálogo entre Europa e Rússia, dois universos culturais diferentes, unidos por artistas muito fortes. Colocar em diálogo especialistas de diferentes campos de atuação enriquece a maneiras de pensar a dança. E Lilia faz isso sem sair de sua área.”

Alguns convidados reagiram surpresos: “mas eu não entendo de dança” era a frase ouvida pela organizadora. Modesto Carone, autor de romances premiados como Resumo de Ana, comentara num jantar seu fascínio pela dança. “Eu escutei”, diz Bogéa. E não esqueceu. Por isso ele se tornou um dos ensaístas ?estrangeiros?, assim como o psicanalista Roberto Gambini e o jornalista Marcelo Coelho. Também ?de fora? é Vadim Nikitin, que atuou em muitas peças do Oficina, sob direção de Zé Celso Martinez Corrêa. Seu texto é prosa poética e bem-humorada (leia trecho abaixo), entrelaçada por citações muito bem costuradas, da mitologia grega ao belo poema de João Cabral de Melo, Estudos para uma Bailadora Andaluza.

De dentro 

Evidentemente o livro traz também ensaios de nomes artistas e estudiosos da dança, a imprescindível visão de dentro em análises verticais que trazem à tona o “por trás da criação” um dos subtítulos do ensaio de Inês Bogéa intitulado Passado Futuro. Em seu texto, analisa as quatro coreografias inaugurais da companhia. Além dela e de sua parceira na direção da companhia, assinam ensaios Beatriz Cerbino, mestre em comunicação e semiótica, estudiosa da relação entre dança e imagem, e a performer e coreógrafa Ciane Fernandes. José Possi Neto, artista múltiplo, diretor de teatro, ópera e dança, assina o ensaio final falando sobre as expectativas que envolvem a São Paulo Companhia de Dança. Sob uma trupe estatal, pesam responsabilidades. Esse livro revela o desejo de assumi-las.

Serviço

Primeira Estação. Organização de Inês Bogéa. 336 págs. R$ 50. Livraria Cultura. Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, 3170-4033. Lançamento hoje, às 19 h