Empresas e Estados ampliam programas para presos e ex-presos

Valor

sex, 19/02/2010 - 8h16 | Do Portal do Governo

Apenas um muro separa os 115 presidiários selecionados para trabalhar no “Módulo de Respeito” dos demais 1,5 mil detentos do presídio de Aparecida de Goiânia, que reúne 35% dos presos do Estado de Goiás. Há nove meses, a Hering passou a oferecer a oportunidade de reinserção no mercado de trabalho aos presos em regime fechado. Eles trabalham de segunda à sábado, das oito da manhã às cinco da tarde, embalando, dobrando, etiquetando e conferindo 30 mil peças que chegam diariamente no galpão onde antes funcionava uma ala do presídio.

A parceria, firmada entre a empresa e o governo de Goiás, é recente, mas está se espalhando com rapidez no Estado e tem atraído outras companhias. A Hering também desenvolve o mesmo projeto nos presídios de São Luís dos Montes Belos, que possui um galpão de costura, e Anápolis. Ao todo, são 250 detentos que recebem cerca de R$ 20 a cada mil peças produzidas, além de reduzir um dia da pena para cada três trabalhados. Assim como a parceria entre o governo de Goiás e a Hering, outros Estados e outras empresas têm ampliado oportunidades para presos ou egressos do sistema penitenciário. As razões variam, mas sempre combinam algum grau de preocupação social com redução de custos, seja de encargos, para as empresas, seja com a própria segurança pública, para os governos.

Os novos funcionários da Hering mudam completamente de rotina: saem da ociosidade em celas superlotadas – algumas com 40 pessoas em um espaço de cerca de 20 metros quadrados -, para dividir o mesmo espaço com sete colegas de trabalho. A mudança é radical, a começar pelo vocabulário. Embora continuem em regime fechado, lá não se diz mais “cadeia e cela”, mas “módulo e alojamento”. “Antes a rotina era ficar o dia inteiro à toa, o clima era péssimo, a gente apanhava por dar bom dia”, diz Valdivino Francisco de Souza, 48 anos, conhecido como “pastor”, por conta das pregações religiosas. Condenado a seis anos e três meses de prisão em regime fechado por tráfico de drogas, Souza trabalha há oito meses no módulo da Hering. O dinheiro que recebe da empresa é enviado aos quatro filhos em Goiânia.

No refeitório do módulo, cerca de 15 presos aguardavam numa manhã de fevereiro, vigiados por dois agentes penitenciários. Eles haviam acabado de ser admitidos para o trabalho na Hering. A seleção é rígida, e os presos passam por duas triagens: uma de bom comportamento e outra com psicólogos. Homens e mulheres trabalham juntos, mas só podem falar o necessário para o trabalho. No módulo de respeito é preciso obedecer regras militares de disciplina, como a higienização das celas. A vistoria é feita pelos agentes diversas vezes por dia e uma camisa jogada na cama vale um “negativo” – com três deles, são expulsos do módulo. Se um deles é pego com drogas, os oito ocupantes da cela são expulsos, o que faz com que eles vigiem uns aos outros.

O barateamento da mão de obra foi um dos atrativos para a Hering ingressar no projeto. A empresa, com sede em Blumenau (Santa Catarina), tem três fábricas em Goiás, 600 funcionários diretos e 2,5 mil indiretos. Dentro dos presídios, são mais 250 colaboradores. De acordo com o gerente da Hering em Goiás, Cláudio Schwaderer, a questão social foi o que conduziu o programa, mas, além disso, a parceria é bastante vantajosa para a empresa, que antes costumava terceirizar o trabalho de embalagem das peças, o que envolve contratos de trabalho bem mais onerosos. Hoje, boa parte desta etapa é feita nos módulos de respeito. Segundo Schwaderer, atualmente o maior concorrente do setor é a China, pelo baixo custo da mão de obra. “Mas nós temos uma China no Brasil: uma população de 500 mil presidiários. Se tivesse que abrir agora uma empresa, seria aqui dentro”, diz. No semestre que vem, a Hering pretende implantar outro módulo no presídio de Aparecida de Goiânia, com atividades de costura.

A expectativa de Caetano Rodrigues de Oliveira, 37 anos, que deve cumprir mais seis anos e nove meses em regime fechado e trabalha no módulo, é ser contratado pela empresa quando deixar a prisão, como já ocorreu com outros detentos. Ele foi preso há dois anos por homicídio e trabalhava antes em uma lavanderia em Goiânia.

De acordo com Edílson de Brito, superintendente do sistema de execução penal de Aparecida de Goiânia, a parceria entre empresa e governo dentro do presídio foi inspirada em um sistema de penitenciárias da Espanha. Segundo Brito, o custo de implantação é muito baixo para o Estado, pois só é necessário reformar e adaptar áreas que já existem dentro dos presídios. Este ano, mais 14 módulos estão sendo construídos em penitenciárias de Goiás.

Além da Hering, a JM Participações e Empreendimentos, uma pequena construtora, desde outubro de 2008 emprega os presidiários de Aparecida de Goiânia que estão em regime semiaberto. Ela leva e busca os presos diariamente para trabalhar na construção civil. O número de presidiários varia conforme o volume de obras. “Em dezembro, estávamos com 70 e este mês, só estamos com 8”, diz Célio Vieira, diretor administrativo da JM. Eles recebem um salário em torno de R$ 500 e a refeição é fornecida pela empresa. Ela, porém, não precisa arcar com encargos sociais destes funcionários, conforme contrato com o Estado. “Em 2009, deixamos de gastar R$ 130 mil em encargos sociais com a contratação dos presidiários”, diz.

Desde o fim do ano passado, o governo do Estado de São Paulo pode exigir que empresas vencedoras de licitações de obras e serviços públicos contratem cota de ex-detentos de até 5% da mão de obra usada na execução de cada contrato – é o Pró-Egresso. A inclusão da nova regra nos editais fica à cargo do órgão estadual responsável pela demanda. Ricardo Gimenes, proprietário da Solares Engenharia, contudo, não esperou ser obrigado para começar a “fazer o bem” e ajudar no combate à reincidência criminal, além de tentar trazer algum respiro às cadeias paulistas, que desafiam leis elementares da física e os direitos humanos ao encerrar cerca de 160 mil homens e mulheres em espaços feitos para 99 mil.

Há quase dois anos, o empresário tem empregado ex-criminosos em projetos de instalações elétricas em obras públicas e privadas e garante que não há diferença entre eles e os outros trabalhadores. Atualmente, são 5 egressos no quadro de 50 profissionais. Em alguns casos, acrescenta ele, os ex-presos, que não têm diferenciação salarial, são mais comprometidos. “Tem muito funcionário que pega um serviço e larga quando recebe o vale. Os egressos dão mais valor ao que recebem.”

O contato com os egressos começou no Sasecop, entidade que oferece cursos de qualificação profissional a pessoas de baixa renda, desempregados, moradores de rua e ex-presidiários. “Dou aulas como voluntário e fico atento aos melhores alunos, que indico para o RH. A partir daí a seleção leva em conta critérios técnicos.”

Justamente por essa razão, Gimenes não consegue contratar mais egressos. “Fica difícil dar chance para um cara que sai da cadeia e não sabe ler nem escrever, sai muito caro preparar esse profissional. Em vez de obrigar as empresas a contratar, o governo deveria preparar melhor essa pessoa ou dar condições para a empresa fazer isso”, cobra o empresário.

Em 2008, 17 mil presos libertados em São Paulo receberam atendimento no programa governamental de atenção ao egresso e à família, mas pouco mais de 2,2 mil fizeram cursos profissionalizantes. O secretário estadual do Emprego e Relações do Trabalho, Guilherme Afif Domingos, afirma que o programa Pró-Egresso está associado à ampliação de atividades de qualificação profissional dentro e fora dos presídios. “O preso faz curso, treina, treina, mas nunca joga. A demanda compulsória baixa é fundamental para um efeito de demonstração em escala que as empresas não têm nada a perder contratando o egresso”, explica Afif.

Há ainda um outro desafio a ser superado, mais subjetivo: o preconceito. Nem todos os clientes da empresa de engenharia de Ricardo Gimenes aceitam gente que cometeu assaltos ou matou alguém no passado na equipe que vai prestar serviço em suas propriedades.

Cinco governos já têm leis de incentivo à contratação

Autoridades responsáveis pelo sistema prisional estão trabalhando com a luz vermelha de alerta acesa há muito tempo. Em cinco anos, o número de pessoas encarceradas cresceu 60%. Com capacidade para 299 mil presos, as cadeias brasileiras abrigam 470 mil. Mobilizados pela campanha “Começar de Novo”, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), governos estaduais e municipais começam a tirar do papel políticas de incentivo e de cotas para estimular uma maior oferta de cursos de qualificação profissional e oportunidades de emprego a ex-detentos.

A lotação dos presídios se reflete nos índices de segurança: a média de reincidência criminal no Brasil beira os 70%. “Os governos não conseguiram, não pensaram e não trabalharam para atender à demanda do sistema carcerário, que é muito maior que a de outros serviços públicos. Sem o mínimo de dignidade na estrutura, quem sai, volta. Deixamos a realidade nos atropelar. Se essa bomba relógio já não explodiu, está muito perto”, desabafa o ex-promotor de Justiça Airton Michels, atual diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), subordinado ao Ministério da Justiça.

A mudança dessa realidade, na opinião do juiz Erivaldo Ribeiro, coordenador do “Começar de Novo”, depende do engajamento da iniciativa privada. “E você, daria emprego para uma pessoa que já pagou pelo seu erro ou prefere que ela volte para a criminalidade?”, diz um dos slogans do programa do CNJ, que em dois meses fechou convênios de cooperação com várias prefeituras, Distrito Federal, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Esses Estados, exceto Minas e Rio, criaram leis permitindo que órgãos governamentais cobrem de companhias com negócios com o Estado a contratação de um percentual de ex-presos, conforme cada licitação. Já a administração mineira paga à empresa, com recursos do orçamento, dois salários mínimos por detento ou ex-detento empregado. Pernambuco, Ceará e Amazonas preparam projetos.

“Talvez seja uma das formas mais eficazes de cuidar da segurança pública. Quem comete crimes hoje são os que estavam presos ontem. Isso onera sensivelmente os cofres do Estado”, diz Ribeiro. Pelas contas do Depen, o custo médio para manter um preso no Brasil é de R$ 1,2 mil por mês. O juiz acrescenta que a iniciativa privada também tem perdas com a reincidência criminal. “As empresas são grandes vítimas, tendo que investir na proteção de seus patrimônios. Elas devem ser corresponsáveis, ao lado do Estado, pela resolução do problema carcerário.”

O programa Pró-Egresso, do governo de São Paulo, lançado em dezembro, ainda não tem exemplos práticos, mas está sendo discutido por entidades como Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e Sindicato das Empresas de Asseio, Limpeza e Conservação (Seac-SP). O presidente do Seac, Aldo de Ávila, prometeu que companhias do setor vão abrir mil vagas para ex-presos paulistas no curto prazo.

De acordo com as regras do programa, órgãos governamentais podem exigir de empresas vencedoras de licitações de obras e serviços públicos que contratem cota de ex-detentos de até 5% do total da mão de obra usada na execução de cada contrato. O secretário estadual do Emprego e Relações do Trabalho, Guilherme Afif Domingos, chama atenção para os desafios da qualificação profissional. “Com a falta escolaridade, falta qualificação e o carimbo da cadeia, a pessoa que está saindo não vai encontrar trabalho.”

Quase metade dos 410 mil detentos dos presídios brasileiros não completou o ensino fundamental. “Este ano, vamos capacitar 5 mil presos em cursos de manutenção elétrica e hidráulica, panificação, confeitaria, telemarketing, recepcionista. Se ele não conseguir um emprego formal, poderá se virar na informalidade como mecânico, eletricista”, diz Mauro Rogério Bittencourt, diretor do Departamento de Reintegração Social da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo.

O “Começar de Novo” também fechou convênio com o Senai. Atualmente, o programa oferece mais de 1.200 bolsas de estudo para ex-presos. No Rio, o Senai-RJ tem escolas instaladas dentro de duas cadeias com cursos de mecânica de carros e motos, pedreiro, marcenaria e ajudante de cozinha. Segundo Sandra Sólon Ribeiro, coordenadora de projetos educacionais do Senai-RJ, além das abordagens técnicas, os professores atuam como psicólogos o tempo inteiro. “Os detentos se agrupam em facções, eles não se olham e não se falam, temos que fazer um esforço grande para mostrar que o curso não é lugar para rixas”, diz.

Em Minas Gerais, único Estado que paga para empresas contratarem presos e ex-presos, a mão de obra que sai das prisões não se resume apenas a trabalhos que requerem baixa qualificação, conta Genilson Ribeiro Zeferino, subsecretário estadual de Administração Prisional. “É preciso redefinir o significado do trabalho no sistema. Não adianta propor projetos artesanais, sem serventia. Devemos investir em boa educação, qualificação e treinamento”, argumenta. Segundo ele, dos 37 mil presos nas cadeias mineiras, 6 mil estudam e outros 6 mil trabalham, incluindo contratos com empresas como Petrobras e Usiminas.

Há ainda vantagem econômica nessa opção. De acordo com a Lei de Execução Penal, companhias não precisam recolher encargos trabalhistas, porque o trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). O salário do preso também pode ser menor que o piso da categoria até o limite de três quartos do salário mínimo.