Em vez da prisão, trabalho em hospitais

Jornal da Tarde - São Paulo - Segunda-feira, 24 de janeiro de 2005

seg, 24/01/2005 - 8h37 | Do Portal do Governo

Programa da Secretaria Estadual da Saúde recebe 90 infratores por mês para prestação de serviço à comunidade em 11 hospitais da Grande São Paulo. Alguns dos participantes pensam em seguir carreira na área da Saúde

RITA MAGALHÃES

O torneiro mecânico João Batista Rosa foi escravo do álcool por 35 de seus 48 anos. Como conta, bebia de manhã, de tarde e de noite, sete dias por semana, 30 dias por mês. Por causa da ‘marvada’ perdeu o emprego – chegou tonto no trabalho e o patrão lhe estendeu o bilhete azul – ficou hipertenso e diabético, foi motivo de piada entre os amigos, teve várias discussões com a família.

No dia 1º de dezembro de 2003, depois de umas e outras, João pegou o carro. Não foi muito longe. Com a coordenação motora prejudicada, bateu num outro carro. Ninguém ficou ferido, mas o policial percebeu sua embriaguez e o levou para delegacia.

Chamado para estar perante o juiz do Fórum de Santana, João teve medo de parar na cadeia junto com assassinos e traficantes. Fez um acordo judicial e em troca de responder a processo criminal por direção perigosa, concordou em pagar pena alternativa: seis meses de prestação de serviço à comunidade. Foi cumpri-la no Hospital Estadual do Mandaqui, na zona Norte da Capital.

Lá, em vez de ficar amontoado numa cela apertada com outros detentos, passa 8 horas semanais trabalhando no almoxarifado. Ele separa materiais e medicamentos para serem distribuídos às diversas enfermarias e andares do hospital.

‘Estou aqui trabalhando, aprendendo um novo serviço e ajudando outras pessoas. Se estivesse numa cadeia, estaria aprendendo coisa ruim e dando prejuízo para o Estado. ‘

Cumprindo a pena alternativa, João ampliou seu círculo de amizades e começou a refletir sobre a conversa que teve com o promotor no fórum. ‘O promotor me incentivou a procurar uma instituição para ajudar a me libertar do álcool. Aquilo ficou martelando na minha cabeça: a bebida só estragou minha vida. Eu brigava com a mulher, não tinha o respeito dos colegas que me chamavam de bêbado, perdi o emprego e a saúde.’

Com a ajuda de um amigo, João se integrou à Sociedade Antialcoólica da Família, onde passa duas horas diárias em terapia de grupo. ‘Pensei que nunca mais fosse me libertar da bebida. Hoje faz 20 dias que não ponho uma gota de álcool na boca ‘, comemorou na última quinta-feira, enquanto trabalhava no almoxarifado do Conjunto Hospitalar do Mandaqui.

O mecânico conta que nesses poucos dias que está sem o álcool ganhou um novo tratamento da mulher e da filha. ‘Hoje vejo que só prejudiquei minha família. Não sei como minha mulher me agüentou durante 26 anos de alcoolismo. Quero vida nova e recuperar tudo o que perdi nesses 35 anos de escravidão.’

João é um dos 90 infratores atendidos por mês pelo programa de prestação de serviços à comunidade firmado entre o Ministério Público e a Secretaria Estadual da Saúde. O projeto que existe desde 1996, mas se intensificou no fim de 2003, já funciona em 11 hospitais da Grande São Paulo.

Agora, a meta da secretaria é implementar o programa nos 23 hospitais da região metropolitana e nos 18 gerenciados por organizações sociais. E, no futuro, levá-lo para as unidades do Interior.

Só o Hospital do Mandaqui recebe uma média de 40 infratores por mês para o cumprimento da pena alternativa.

Desses, 91,5% são homens. Entre eles estão engenheiros, advogados, arquitetos e outros profissionais com nível universitário.

Hospital do Mandaqui já recebeu 2.180 infratores

Desde que o programa de pena alternativa foi implementado, 2.180 infratores já prestaram serviço no Hospital Estadual do Mandaqui. Apenas no ano passado, o projeto da Secretaria de Estado da Saúde recebeu 1.056 pessoas condenadas a trabalhar para o bem da comunidade.

Segundo a secretaria, somente quem for beneficiado na Justiça por suspensão ou transação do processo penal, previstos na Lei 9.099/95 (que trata dos crimes de menor potencial ofensivo, como direção perigosa, dano a patrimônio e briga), pode participar dos serviços nos hospitais.

O promotor Arnaldo Hossepian Júnior, assessor do procurador-geral de Justiça, explica que a pena alternativa é aplicada aos infratores que passam pela transação penal – acordo em que o acusado aceita a prestação de serviço antes de discutir se é ou não culpado – e aos réus condenados a penas inferiores a 4 anos de prisão.

Antes de trabalhar em um hospital, o acusado passa por uma entrevista com um assistente social da instituição. Durante o encontro, o profissional avalia o perfil psicológico e as habilidades do infrator. Só então ele é encaminhado ao setor do hospital que melhor se enquadre à sua capacidade. Na maioria dos casos, ele trabalha na área administrativa ou na recepção.

‘É uma via de mão dupla. Enquanto essas pessoas são reinseridas na sociedade, auxiliam nos hospitais, o que acaba resultando em melhoria para a população’, afirma o secretário de Estado da Saúde, Luiz Roberto Barradas Barata.

‘Morria de medo de errar e levar bronca’

Os infratores de melhor nível escolar são aproveitados em áreas que exigem mais conhecimento e habilidade. É o caso de Felipe Martins de Sousa, 24 anos. Por ter o ensino médio completo, ele foi escalado para trabalhar no setor de raio-X do Hospital do Mandaqui. Hoje, ele faz a revelação das chapas e já pensa em se tornar um profissional da área.

Em setembro de 2002, Felipe foi acusado por PMs de desacato à autoridade. O rapaz lembra que estava na Estação Santana do Metrô quando viu dois policiais ajudando uma mendiga que havia se engasgado com um pedaço de osso. ‘Um disse para o outro: ‘deixa ela se danar’. Quando ouvi isso, falei que era obrigação deles prestar socorro. Me perguntaram quem eu era. Respondi que era quem pagava o salário deles. Me xingaram e eu fiz o mesmo. Daí, me jogaram na viatura e me levaram para a delegacia.’

Felipe começou a prestar serviço no Mandaqui em outubro de 2004. ‘Eu trabalho na câmara escura, onde é feita a revelação das chapas. No começo, morria de medo de errar e levar uma bronca. Hoje, eu sei fazer tudo com tranqüilidade. Assim que eu terminar a pena vou fazer um curso técnico e procurar emprego na área. A discussão com os PMs serviu pelo menos para me indicar uma profissão.’

Casado e pai de dois filhos, Felipe também trabalha no lava-rápido do cunhado. Assim que sai do raio-X, onde presta 7 horas semanais, ele vai lavar e encerar carros.