É preciso reformular o ECA

Jornal da Tarde - 15/9/2003

seg, 15/09/2003 - 9h57 | Do Portal do Governo

A promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, há 13 anos, representou um enorme salto de qualidade no atendimento dado ao jovem em conflito com a lei, no Brasil. Em um país que já havia enfrentado, desde a sua colonização, regulamentações esdrúxulas como a roda dos desvalidos e o código do menor, o ECA veio resgatar a dignidade perdida. Foram avanços incontestáveis. A Febem de São Paulo, executora no Estado das medidas socioeducativas preconizadas pelo ECA, precisou remodelar métodos, preparar funcionários e alterar procedimentos – e assim vem fazendo.

Hoje, por ter cumprido os preceitos do ECA, e ao contrário do que diz o noticiário sensacionalista, a Febem mandou para o passado o apelido de ‘escola do crime’. Na quase totalidade de suas 68 unidades, os mais de 6.000 internos são preparados para o retorno digno à sociedade, por meio de atividades educacionais, esportivas e artísticas, além de um leque cada vez mais amplo de oportunidades de profissionalização. Tudo como recomenda o estatuto.

Não se pode ignorar os casos pontuais, isolados, de pequenos grupos de jovens que se rebelam, agridem e destroem. Nem se pode fechar os olhos a denúncias de espancamentos e maus-tratos por parte de alguns poucos funcionários. Nas exceções, a presidência da Febem toma e tomará sempre a atitude que se recomenda em qualquer organização séria: as causas das desordens são investigadas, se preciso corrigidas, e os funcionários denunciados não escapam da apuração de suas atitudes. Só este ano, mais de 100 funcionários foram afastados do serviço para averiguação e outros 57 deixaram a Febem.

Na busca de soluções mais amplas, a Febem trabalha com um olho no planejamento de médio prazo (que envolve a construção de unidades menores, dentro da política de descentralização) e o outro nas situações emergenciais. Em ambos, procura superar incompreensões e dificuldades impostas muitas vezes por pessoas e entidades que mais deveriam colaborar.

São prefeitos e comunidades que se recusam a oferecer abrigo para seus próprios jovens; são entidades ditas defensoras dos direitos humanos, prontas a encampar sem maiores cuidados todo tipo de denúncia; e são, ainda, até mesmo representantes da Justiça, que dão as costas para a realidade e baixam suas determinações como a dizer ‘cumpra-se’. E o Estado que se vire.

O lado ainda não resolvido da Febem – aquele das rebeliões e dos maus-tratos – é em grande parte produzido por atitudes como essas, mas, também, pelo fenômeno dramático do crescimento da violência, que chega cada vez mais precocemente aos jovens. Nesse aspecto, alguns pontos do ECA necessitam de ajuste. Em razão do entendimento de sua aplicação no dia-a-dia, que só o tempo pôde ensinar. Para esse ajustamento, é preciso que o estatuto seja ‘dessacralizado’, como pregou, em entrevista ao Jornal da Tarde, o secretário Gabriel Chalita, da Educação estadual. No caso do ECA, a necessidade de mudança é até uma imposição de interesse direto das próprias crianças e dos adolescentes, para preservação de sua integridade física, emocional e intelectual.

Um aspecto claro é a ausência de prazo para o cumprimento da medida socioeducativa. O adulto, quando comete um crime, recebe uma pena e sabe desde logo quanto tempo terá de ficar na prisão. O adolescente, ao contrário, vai para a Febem sem que o período da internação seja previamente determinado. Nem mesmo é criada uma perspectiva de progressão, o que gera angústia e insegurança, além de atrapalhar o relacionamento com os monitores e prejudicar o planejamento do programa educacional adequado a cada caso.

Defendemos, também, que seja mandado a julgamento, como qualquer outro adulto, o jovem maior de 18 anos que cometa delito dentro da Febem. Temos tomado o cuidado de, em todas as ocorrências nas unidades, fazer o registro em delegacia e encaminhar para a polícia comum os jovens adultos envolvidos em agressões e depredações. Para começar, esse jovem adulto só está na Febem porque cometeu infração pouco antes de completar maioridade. Note-se, porém, que essa é uma situação que afeta uma parte mínima – não mais de 3% dos quase 19 mil jovens atendidos pela Febem, entre os internos e os que cumprem regime de semiliberdade e liberdade assistida. Embora poucos, são estes que contribuem para o estigma da instituição e de seus internos.

Por causa de brechas legais como essa, a Febem transformou-se numa estranha corda de várias pontas que se presta a um confuso jogo, em que, dependendo da força com que se puxa um dos tirantes, muda a posição de todo o cabrestante. Sem regras claras e com participantes que mudam de posição a cada instante, os mesmos que há pouco faziam força para cá, no momento seguinte estão do lado contrário. E há, também, os que, em vez de puxar, empurram a corda para longe de si. O ponto comum de todas as forças em jogo é triste: há mais gente preocupada com a força do que com a corda. Que vai ficar esgarçada e rota, esquecida num canto, quando a disputa termina.

Nossos jovens precisam de uma regulamentação e que a corda sirva para atividades mais saudáveis do que o cabo-de-guerra. Até porque essa corda deve servir para puxar pessoas para fora de um buraco, em direção à paz.

Paulo Sérgio de Oliveira e Costa é promotor de Justiça licenciado e presidente da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) de São Paulo