De engenho a centro cultural da USP

O Estado de S. Paulo - Quarta-feira, 3 de dezembro de 2003

qua, 03/12/2003 - 10h24 | Do Portal do Governo

Ao lado de ruínas, em Santos, universidade vai montar laboratório de arqueologia e auditório

Iuri Pitta

Santos – Há tempos o Engenho São Jorge dos Erasmos, em Santos, não via tanta gente ocupar sua terra gramada, ainda úmida por causa da chuva dos últimos dias. Provavelmente mais de quatro séculos, desde a época em que no lugar das ruínas havia fortes paredes de pedra que protegiam um dos primeiros núcleos produtores de açúcar da então Capitania de São Vicente.

É essa história perdida que os professores da Universidade de São Paulo (USP) querem resgatar e tornar acessível à comunidade da Baixada Santista. Ontem, eles assistiram à apresentação dos planos da Reitoria para o espaço.

A academia desceu a serra e quer fazer lá, ao lado das ruínas quinhentistas, uma base cultural avançada, com salas de estudo e exposições, um auditório e um laboratório de arqueologia. O projeto do arquiteto Júlio Roberto Katinsky foi apresentado pelo reitor da USP, Adolpho José Melfi.

Mesmo com a construção do núcleo, os trabalhos de pesquisa arqueológica e histórica do sítio prosseguirão. “Em mais uns cem dias de trabalho poderemos ter conclusões mais precisas sobre como funcionava o engenho”, explica a professora Margarida Davina Andreatta, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) e do Museu Paulista (Ipiranga).

Acredita-se que o engenho tenha sido construído em 1534, mas provavelmente muito pouco do que sobreviveu até o século 21 é original. A coordenadora do Conselho Curador das Ruínas, Maria Cecília França, conta que há indícios de que o engenho tenha mudado de lugar. “Em uma das cartas que pesquisamos em arquivos holandeses, há um relato de que era preciso mudar de lugar, porque na região havia problemas com alagamentos”, diz a professora.

As pesquisas chegaram até a Holanda porque o engenho, no início da colonização, pertencia a um comerciante da Antuérpia. Erasmos Schetz – daí o nome do sítio arqueológico – vinha de uma família que vivia na atual fronteira entre Holanda, Bélgica e Alemanha. Firmou sociedade, por meio de um procurador flamengo, com os primeiros portugueses que estavam em São Vicente, incluindo Martim Afonso de Souza, donatário da capitania.

Venda – Em 1540, estima-se, Schetz virou o único proprietário do engenho e tocou a produção de açúcar até sua morte, dez anos depois. Após esse período, é provável que os filhos do mercador tenham mantido o negócio até vendê-lo, em data desconhecida.

Ainda se sabe pouco sobre como era dividido e organizado o espaço no local. É possível deduzir, por exemplo, que havia preocupação com segurança, evidenciada pela seteira que restou em um dos muros. Desse buraco vertical
estreito, é possível ter noção da visão que algum guarda tinha da entrada da propriedade, e de como era necessário estar atento a qualquer possibilidade de invasão para disparar seu arco e flecha. “Uma das cartas relata uma invasão do engenho”, lembra Maria Cecília. “E pelos estudos geológicos, podemos supor que ele chegou a ser queimado.”

Essas pesquisas mais recentes sobre as ruínas começaram em 1996. Os primeiros estudos tiveram início em 1958, quando o proprietário da gleba, Otávio Ribeiro de Araújo, doou a área do sítio arqueológico à USP.

Cobertura – Naquele ano, o chefe do 4.º Distrito da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Luís Saia, relatou que o engenho era arquitetura de “modelo açoriano, (…) movido a água”. Foi Saia, por sinal, quem fez os estudos para a construção da cobertura de parte das ruínas, de modo a ajudar a conservação das paredes de pedra.

Ontem, o pavilhão formado pela cobertura protegeu mais do que as ruínas.

Abrigou os convidados da cerimônia que ouviram o Coral da USP (Coralusp) cantar. Provavelmente – afinal, poucas são as certezas relativas a um patrimônio de quase 500 anos –, as únicas músicas cantadas no engenho antes dessa apresentação eram as dos escravos que lá trabalhavam. O que a USP quer, agora, é que as ruínas presenciem cada vez mais atos inéditos, sem esquecer seu passado colonial.