‘CSI’ à brasileira

Revista da Folha - Domingo, 13 de abril de 2008

seg, 14/04/2008 - 8h50 | Do Portal do Governo

Revista da Folha

Microgotas de sangue no microscópio, órgãos humanos fatiados em pedaços ultrafinos, pós magnéticos que revelam impressões digitais e reagentes químicos que denunciam a presença de fluidos corporais. O mundo asséptico da Superintendência da Polícia Técnico-Científica do Estado de São Paulo passa longe da emoção provocada pelo assassinato de Isabella Nardoni, 5, morta no último dia 29. Mas seus laboratórios são uma das chaves para resolver um crime que comoveu o país.

A participação da perícia foi fundamental para montar o quebra-cabeça das circunstâncias da morte da menina. Um dos laudos comprovou que ela foi asfixiada e depois jogada do sexto andar do prédio. Outro trabalho da perícia eliminou suspeitas, como as de que roupas com sangue encontradas em um apartamento vizinho ao do crime eram de Alexandre Nardoni, o pai da garotinha.

Corriqueiros para os fãs do popular seriado “CSI”, laudos técnicos como esses são os responsáveis pelo aumento da visibilidade da polícia científica em todo o mundo. Assim como os peritos que ajudam a desvendar crimes em episódios eletrizantes da série, os profissionais da vida real também conquistaram importância e momentos de fama.

“Vivemos a síndrome ‘CSI'”, diz Celso Perioli, coordenador da SPTC (Superintendência da Polícia Técnico-Científica) e perito desde 1976. “Há uma exigência cada vez maior de provas técnicas. O mundo passou a comprar produtos para investigação científica, e os preços caíram. E mais países estão fabricando determinados equipamentos.”

Um dos sintomas da valorização da ciência na resolução de crimes é o aumento da participação da SPTC no orçamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Há dez anos, a verba da superintendência era de R$ 1,48 milhão, 0,05% do total do orçamento. Hoje, esse valor é de R$ 191,5 milhões, ou 2,25% do total, um aumento de 12.841,3%.

O efetivo do órgão também cresceu: eram 2.847 funcionários em 1999. Atualmente, são 3.600. Ainda é pouco. “O número de peritos teria que ser triplicado. A perícia acaba sendo malfeita, não por má vontade, mas por acúmulo de trabalho”, aponta Maria do Rosário Seraphim, 69, presidente da Associação dos Peritos Criminais do Estado de São Paulo.

Terceira mulher a ter autorização para ir a campo, Maria do Rosário se aposentou há sete anos, depois de 30 como perita. “Antes, os reagentes eram obsoletos. Para saber se havia sangue na cena do crime, era preciso esperar os produtos reagirem por três horas”, lembra. “Hoje , o ‘Luminol’ reage quase instantaneamente.”

Renato Pattoli, 50, apelidado de “Grissom brasileiro”, em referência ao brilhante e taciturno chefe dos agentes do “CSI”, diz que, no passado, a prática era jogar água oxigenada sobre o local onde se achava que havia sangue. Se borbulhasse, era sinal de que havia matéria orgânica, provavelmente sangue. “Mas isso destruía a amostra.”

Engenheiro agrônomo, com formação em informática, Renato fez uma descoberta diante do corpo de uma vítima encontrado em um terreno baldio onde crescia o capim Brachiaria decumbens. Grissom ficaria orgulhoso. “Sabia que o pólen desse capim adere a qualquer coisa. Quem entrou no terreno o teria grudado na calça.” Quando um suspeito, ex-namorado da vítima, foi preso, o perito pediu para ver as calças dele. “Tinha o pólen grudado”, conta. “Esse dado não provou que ele era assassino, mas ficou claro que estava mentindo.”

É amplo o leque de ferramentas para desmanchar falsos álibis. Tanto que a polícia investe em equipamentos como o “Crimescope”, usado para detectar manchas de sangue, vestígios de pólvora e ossadas. Outro aliado “high-tech” dos investigadores é o seqüenciador de código genético.

Além do uso de equipamentos, o Instituto de Criminalística faz simulações usando conceitos de física, como em um caso do interior de São Paulo em que uma criança foi encontrada afogada em um balde. “Usamos um boneco para saber se uma criança ficaria de ponta-cabeça sem ser segurada”, conta Adilson Pereira, 48, diretor do núcleo de física do IC. Eles comprovaram que era possível e que poderia ter sido acidente e não, necessariamente, um crime.

Os métodos ultra-sofisticados do seriado “CSI” chegam a provocar risos entre funcionários do IC e do IML. “Fazemos um trabalho sério e honesto, sem glamour”, diz Alessandra Pereira da Silva, 34, engenheira química que trabalha com os cromatógrafos do IC. Ela critica, por exemplo, a rapidez e a precisão excessiva dos laudos que desvendam os crimes na série. “Muita coisa no seriado procede, mas, quando os agentes do ‘CSI’ conseguem dizer que tal folha é do ipê-rosa da Amazônia, sabemos que essa identificação é altamente improvável.”

Festa no local do crime

É louvável que a Polícia Científica esteja se equipando com produtos de ponta. Mas especialistas indicam que o aparato é insuficiente frente ao grande número de crimes. Aconteceram, em média, 28 homicídios por semana em São Paulo, em 2007.

Os potentes microscópios do IML não passam de seis unidades. A alta demanda pelos equipamentos, somada à falta de mão-de-obra, faz com que um laudo demore 90 dias para ser concluído. “O país possui um índice de criminalidade muito alto e o número de crimes não-solucionados é considerável”, afirma Ricardo Molina, professor da Unicamp e perito particular. “Não dá para fazer um ‘CSI’ aqui.”

Dois dos problemas que deixam o Brasil bem distante da realidade americana são as falhas de procedimento e a estrutura precária. É corriqueira a não preservação da área de um delito ou de um acidente. “Quando o perito chega, já ocorreu uma festa no local do crime. E podem surgir pistas que apontam para direções opostas”, diz Molina.

O “Grissom brasileiro” sofre com a adulteração que, em muitos casos, quase inviabiliza o trabalho. “Entre 80% e 90% das cenas de crime são alteradas antes da chegada da perícia. Temos que trabalhar em cima do prejuízo”, diz Pattoli.

Outra crítica é enterrar rapidamente os mortos. O sepultamento, quase sempre, é autorizado antes da resolução do caso. “Em países desenvolvidos, o corpo fica semanas no necrotério”, diz Molina. “A família quer o corpo perto de si, mas, após um crime, ele é do Estado”, afirma o legista Fortunato Badan Palhares, que atuou no caso PC Farias, quando o local do crime foi adulterado e o corpo, liberado 28 horas após ter sido encontrado, em 1996. “A exumação nunca trará os mesmos resultados”, diz Palhares.

A pouca interação entre o pessoal do IML e o do IC é outro problema. “O legista só vê o corpo, e o criminalista não entende nada do corpo”, explica Molina. É recomendável que o médico-legista acompanhe mais os crimes de sangue ou de autoria desconhecida desde o começo das investigações.

O assassinato de Isabella também aponta para outro fenômeno moderno: o uso de tecnologias, como as hoje onipresentes câmeras, na elucidação de crimes. A imagem do pai, madrasta e a vítima em aparente harmonia, captada pelo circuito interno de um supermercado da capital paulista horas antes do crime, foi usada pelos advogados de defesa.

Outras imagens ganharam status de provas em escândalos recentes no país, como a do raio-X de aeroporto que flagrou um assessor do PT com dólares na cueca, em 2005. O exemplo é um dos usados pelo consultor Mário Rosa, autor de “A Reputação na Velocidade do Pensamento” (Geração Editorial, 372 págs., R$ 49,90), em um mundo que é um grande “Big Brother”.

A imagem da família no supermercado invadiu o horário nobre da TV. “Em um mundo interativo, com a necessidade de condenações e absolvições, nem sempre teremos certezas interativas”, diz Mário, apontando que, com o avanço da tecnologia, cada vez será mais difícil esconder as contradições. Se as câmeras não trouxerem as respostas, há ainda a perícia para ajudar a Justiça a condenar ou a absolver. E também as tradicionais testemunhas, munidas de olhos e ouvidos bem atentos.