Coração artificial está perto de ser realidade

Correio Popular - Campinas - Segunda-feira, 13 de dezembro de 2004

seg, 13/12/2004 - 10h17 | Do Portal do Governo

Testes em seres humanos devem começar no próximo ano; aparelho que pode ser implantado no corpo tem tecnologia desenvolvida no Brasil

Angela Kuhlmann
Especial para a Agência Anhangüera

O sofrimento e a angústia em que vivem diariamente e sem descanso os pacientes da fila de transplante de coração estão na iminência de diminuírem com a conseqüente melhora na qualidade de vida, sem tantos sacrifícios e limitações. O primeiro coração artificial com dois ventrículos do Brasil tem apresentado resultados positivos em experiências bem-sucedidas realizadas em bezerros, animais que propiciam testes de coagulação do sangue, irrigação de todos os órgãos do corpo e eventuais rejeições ao dispositivo. A partir do próximo ano o aparelho poderá ser testado em humanos e ser colocado no mercado.

A pesquisa, iniciada em 1998 como tese de mestrado do engenheiro mecânico e bio-médico Aron Andrade, e aprofundada no Baylor College of Medicine, em Houston, nos Estados Unidos, está tendo continuidade no Instituto de Cardiologia Dante Pazzanese, da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. O aparelho, que pode aliviar a pesada rotina de 80 pacientes em lista de espera só no Estado, não substitui o órgão natural, mas auxilia enquanto não aparece um doador cujo coração seja compatível com o de cada doente.

“No momento, estamos desenvolvendo, em parceria com a Fundação Adib Jatene, o aparelho com apenas um ventrículo que poderá ser implantado em pessoas que estão com o ventrículo esquerdo comprometido e que representam quase a metade dos pacientes da lista de espera mas, no futuro, pretendemos avançar até o equipamento mais completo, com dois ventrículos”, afirmou Andrade.

De acordo com ele, o aparelho é colocado logo abaixo do coração natural com duas câmeras de bombeamento do sangue. “O coração natural injeta sangue dentro do artificial que ajuda a fazer com que o sangue volte para cima com mais pressão e irrigue melhor as vias superiores sem exigir tanto esforço do coração já debilitado”, explicou.

Totalmente implantável, o aparelho trabalha com bateria e controlador e utiliza um sistema de carga da bateria interna feita por uma bobina que fica fora do corpo ligada ao interior por um fio. “A transmissão é feita por campo magnético e essa bobina fica constantemente sendo carregada e conectada a uma bateria externa; ambos são facilmente substituíveis sendo que a bateria pode ser recarregada na tomada”, detalhou.

Como se fosse um medalhão redondo, a bobina conectada ao aparelho implantado fica num colete colocado na altura do tórax e ligada à bateria colocada na altura da cintura. Segundo o pesquisador, a bobina pode ser desconectada por no máximo 45 minutos para que o portador possa tomar banho e trocar de roupa.

Benefícios

As vantagens desse aparelho em relação ao que substitui o coração natural são várias. “A cirurgia é mais simples, a recuperação é mais fácil, e é possível manter o controle da freqüência cardíaca e da pressão arterial mais facilmente, já que o coração do paciente continua funcionando. Em uma eventual falha do equipamento, o portador ainda tem o coração natural para mantê-lo vivo enquanto forem feitos os reparos necessários”, disse o autor da pesquisa.

Andrade está animado com os resultados dos testes em animais. Segundo ele, o bezerro portador do aparelho se mantém vivo e venceu o primeiro mês de pós-operatório. “Houve uma pequena rejeição na primeira semana e ele já está passando para uma outra fase, no entanto, ainda há um período de avaliação clínica para que ele possa ser testado pela primeira vez em humanos, ainda no próximo ano”, declarou.

O autor da pesquisa citou ainda que nos Estados Unidos já são usados corações artificiais, no entanto, limitados a pacientes com problemas no ventrículo esquerdo. “Quando há problemas nos dois, são colocados dois aparelhos”, esclareceu.

Como exemplo dos bons resultados do coração artificial ele lembra de um paciente norte-americano que se adaptou tão bem à novidade que quando chegava sua vez de fazer o transplante cardíaco pedia para ser passado para trás na fila. “Ele se deu tão bem com o coração artificial que adiou por quatro anos o transplante”, contou.

Transplantes de órgãos aumentam ano a ano

A poucos dias de finalizar o ano, o balanço da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo já revela o melhor ano da história em transplantes de órgãos. Neste ano, até o dia 9 de dezembro foram contabilizados 1.225 cirurgias, 15% a mais que em todo o ano passado, até então considerado o melhor, quando foram registrados 1.062 transplantes.

“É muito importante que as famílias se conscientizem que as doações salvam vidas. O trabalho em São Paulo está no caminho certo e a ajuda da população é de extrema importância”, afirmou o coordenador da Central Estadual de Transplantes, Luiz Augusto Pereira.

No Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), único centro que realiza essa cirurgia na região de Campinas, há cerca de 40 pacientes em processo de exame para avaliação. O médico-assistente da Cirurgia Cardíaca do HC, Orlando Petrucci Júnior, explicou que quando termina a bateria de exames, o doente é ativado e está apto a receber um novo órgão e o tempo de espera vai depender do tipo sangüíneo e do peso do doador ser compatível com o do receptor. Ele afirmou ainda que a média de espera por um transplante é de 10 meses.

Desde 1998, quando a Unicamp iniciou esse tipo de atendimento já foram realizados 12 transplantes de coração. Desses pacientes, dois faleceram ainda no pós-operatório; outros 10 chegaram a ter alta e seis estão vivos, com mais de cinco anos de sobrevida. “Quatro faleceram por diversas causas mas esse balanço é compatível com a literatura mundial em que entre 60% e 70% dos pacientes ultrapassam os cinco anos.

Em todo o Estado, os transplantes de rins foram os que mais cresceram neste ano. Foram 568 em 2003 contra 674 até o último dia 9, um aumento de 18,6%. Em seguida estão os de pâncreas e pulmão, ambos com avanço de 18%. Os de coração apresentaram um crescimento bem mais modesto e passaram de 95, em 2003, para 96 em 2004.

Confiança é palavra-chave para paciente do HC

A feição é alegre e a esperança brilha no olhar do baiano de nascimento, mas paulista por adoção, Osmã Davino, 60 anos, um dos pacientes do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O agravamento de seu quadro de insuficiência cardíaca por cardiomiopatia dilatada o levou para a fila de transplantes cardíacos. Confiante, ele acredita que logo aparecerá um doador compatível com o seu tipo sangüíneo e peso. É tudo o que ele deseja na vida para curtir melhor e desfrutar por muitos mais anos da convivência com os nove filhos e os 13 netos que teve com a mulher, natural de Alagoas.

Caminhoneiro por 40 anos, ele rasgava as estradas do País com o leva e traz das cargas que transportava. Mas num dia de 1992 teve a vida profissional inviabilizada repentinamente quando estava ao volante de seu caminhão exatamente na chamada “Curva da Onça” na subida da Via Anchieta com destino à Capital paulista. “Senti um mal súbito e desmaiei ao volante. A minha sorte é que um dos meus filhos, na mesma profissão, vinha em outro caminhão atrás e me acudiu na hora; era um derrame cerebral do qual me recuperei até bem, mas deixou o coração muito lesado”, contou.

Ele ainda voltou às rodovias após o episódio mas desde 1994 até dois anos atrás viveu às voltas com internações e tratamentos prolongados até que os médicos puseram um ponto final em sua atividade profissional. “Meus médicos de São Paulo me proibiram de trabalhar e me aconselharam a consultar uma equipe especializada em cardiologia e eu escolhi a Unicamp”, relatou.

O antigo endereço, em São Bernardo, foi trocado por paragens mais tranqüilas também por recomendação médica. Ele vive há seis anos com a mulher e os dois filhos menores em São José dos Campos. E a cada dois ou três meses consulta a equipe médica do HC da Unicamp, chefiada pelo cardiologista Fernando Squelini.

Privações

Enquanto o doador não aparece, Davino enfrenta uma vida limitada. Não pode fazer esforço físico, fica mais em casa assistindo televisão e se distraindo com um computador que ganhou de presente dos filhos, diante do qual passa horas jogando paciência. Seus momentos de maior alegria são quando todos os netos correm pela casa.

Da aposentadoria, de três salários mínimos, gasta cerca de R$ 300,00 a R$ 400,00 por mês com os 15 comprimidos diários de remédios para manter seu quadro estável. “Ainda bem que tenho muitos filhos que acabam me ajudando muito financeiramente e afetivamente; eles não descuidam de mim”.

Como o prazer de viajar ainda corre por suas veias, ele cria coragem na despedida da consulta médica e pergunta ao cardiologista Squelini se pode ir até Alagoas, de carro, para passar o Natal. Claro que o pedido foi negado e aí ele trocou por outro; “quem sabe Papai-Noel me presenteia com uma ‘bomba’ daquelas novinhas em folha para que em breve eu possa pegar a estrada novamente”.