Cora Coralina, artista apaixonada pela arte de viver

O Estado de S. Paulo

ter, 29/09/2009 - 8h27 | Do Portal do Governo

Museu da Língua Portuguesa e livro lembram seus 120 anos de nascimento 

Ao completar 21 anos, Cora Coralina saiu de sua terra natal, a cidade de Goiás, então capital do Estado de mesmo nome. Por amor, ela fugiu na calada da noite, em cima de um burro. Apaixonada por um chefe de polícia, homem 22 anos mais velho e separado, ela tinha a cidade São Paulo como destino. Apesar do escândalo da união proibida, ela tocou a vida no interior paulista, desempenhando diferentes funções. Continuou a escrever, mesmo sem a aprovação do companheiro. Sua estreia nas livrarias se daria com 75 anos.

A voz emitida aos sussurros podia, a princípio, esconder a forte personalidade de Cora Coralina, uma mulher movida por paixão, que não descartou o respeito às tradições familiares e religiosas, mas que cumpriu o significado do seu pseudônimo adotado aos 15 anos, quando Ana Lins dos Guimarães Peixoto começou a escrever os seus primeiros textos. A autora explicou a origem do seu nome literário – Cora vem de coração e Coralina, de vermelho.

“Não dá para fazer uma exposição contando a vida inteira dessa mulher de coragem absurda”, diz Júlia Peregrino, curadora de Cora Coralina: Coração do Brasil. A mostra comemora os 120 de nascimento da poeta goiana, feitos em agosto, e começa hoje no espaço provisório do Museu da Língua Portuguesa. “Depois de 98 anos, ela volta à Estação da Luz”, diz Júlia, lembrando a chegada da escritora à cidade grande nos inícios do século 20. A exposição apresenta três painéis com 145 imagens que registram, entre manuscritos e cartas, os momentos eloquentes da trajetória da poeta, morta aos 96 anos, em 1985. Um dos autores com quem se correspondeu é Carlos Drummond de Andrade, responsável por chamar a atenção sobre a sua arte lírica e simples. Ela era uma autodidata. 

“Os painéis remetem ao universo de Cora, uma mulher da casa.” No centro do espaço expositivo, uma estrutura reproduz os balaústres da ponte sobre o Rio Vermelho, vizinha ao imóvel transformado no Museu Casa de Cora Coralina, que cedeu o material da mostra em São Paulo. Ao retornar à cidade natal, aos 68 anos, Cora passou a fazer doces. Como doceira, ela pôde comprar dos sobrinhos a casa do século 18 onde se criou, e que chamava de A Casa Velha da Ponte. A experiência culinária está registrada em Cora Coralina: Doceira e Poeta (Global, 144 págs., R$ 119), livro de receitas que será lançado na abertura da mostra. Colunista do caderno Paladar, do Estado, J.A. Dias Lopes assina o prefácio. 

O receituário sofreu adaptações para se adequar aos hábitos alimentares atuais. Os ingredientes, como ovos às dezenas e banha de porco, são da época em que o prazer, e não a culpa, tinha lugar garantido à mesa. Algumas das receitas foram refeitas por Eduardo Galvão, seu bisneto. Cora Coralina se dizia melhor doceira que poeta. Ela preparava os doces em fogão a lenha e tachos de cobre ou bronze, areados com limão e cinzas.

O seu preparo culinário é feito de paciência e capricho. E de muito rigor. “Doceira que lambreca a mão não é doceira”, ela dizia. Uma boa fazedora de doces, segundo a escritora, só pode sujar dois dedos, o indicador e o polegar. Para ela, fazer doces é como criar poesias, ambas sendo artes nobres para os sentidos e para a alma. A paixão de Cora era pelo prazer de viver.

Serviço
Cora Coralina: Coração do Brasil. Museu da Língua Portuguesa. Pça. Luz, s/n.º, 3326-0775. 10h/ 17h (hoje até 22h). R$6. Até 13/12