Consertos para a juventude

Jornal da Tarde - São Paulo - Terça-feira, 23 de novembro de 2004

ter, 23/11/2004 - 10h02 | Do Portal do Governo

Quarenta garotas chegaram ao auditório do Palácio dos Bandeirantes como estrelas. Internas da Febem, fizeram sua primeira grande apresentação para uma platéia de gente fina e provaram o fenômeno de um projeto que completa 10 anos

JÚLIO MARIA

Os Rolling Stones se sentiriam as criaturas mais vulneráveis do show bizz se vissem o esquema de segurança que cerca um grupo de quarenta garotas artistas que não têm mais de 18 anos. Elas saem de sua base em um ônibus de janelas lacradas, escoltado por carros cheios de agentes. Usam camisetas amarelas e cabelo preso. Quando chegam ao local do concerto, seis policiais militares acompanham seus passos. Se precisam ir ao banheiro, vão de seis em seis. Se querem falar com os repórteres, só em companhia dos seguranças.

As meninas chegam como estrelas. Nomes: só revelam suas iniciais. Fotos: só se não mostrar seus rostos. Elas pertencem ao grupo Camerata das Internas da Febem Mooca, formado por violonistas e cavaquinistas que se sentem livres quando conseguem fazer música sair de suas mãos. ‘Gosto de música porque gosto de ouvir o sentimento dos outros’, diz a morena de sorriso doce e nome artístico A.B., 18 anos.

A grande noite da Camerata da Mooca foi na última quarta-feira, quando as 40 meninas se apresentaram para uma platéia no Palácio dos Bandeirantes que os Stones jamais estiveram. ‘Música tem o poder de mudar a gente’, comentava o governador Geraldo Alckmin, depois de ouvi-las. ‘Que música mudou o senhor?’, perguntou o repórter. ‘Estou adorando um disco que ganhei há poucos dias, gravado por Elis Regina e Tom Jobim. ‘Elis & Tom’ é fantástico.’

‘Elas também são capazes de mostrar o belo’, dizia a secretária de Cultura do Estado, Claudia Costin. ‘E o que a senhora ouve?’ ‘Ah, eu sou muito eclética. Gosto de Mahler, de Camargo Guarnieri, ouço muito a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.’ Mais formal, o secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania, Alexandre de Moraes, que também é presidente da Febem, falava de causas e efeitos. ‘Queremos tornar aquela internação menos traumática para os menores. E isso se faz com esporte, arte, música.’ Se o secretário toca algum instrumento? ‘Não, nenhum.’

O concerto que contou com uma comovente participação da cantora Mônica Salmaso e do acordeonista Toninho Ferraguti, que abriu o evento batizado ‘Febem in Concert’. O festival de música, realizado pelo Projeto Guri (veja texto abaixo), seguirá em várias unidades da Febem com grupos formados por internos até o dia 1º de dezembro, quando haverá um encerramento especial no Memorial da América Latina. A última das apresentações terá a participação do cantor e compositor Toquinho.

A noite de gala para as meninas da Camerata não durou mais do que duas horas de palco. Duas horas que lhes pareciam uma semana. ‘É um frio na espinha que só passa quando a gente toca a primeira nota’, dizia A.B., 16 anos, a mais roqueira das integrantes do grupo. Seu rosto fechado abre fácil quando o assunto é Nirvana.

Antes de ir parar na Febem, ela tocava músicas dos Ramones e do Nirvana em uma banda chamada Kaos. ‘O Kurt Cobain é maravilhoso. Ele morreu no dia do meu aniversário.’ Seu cachorro, Cobain, é o primeiro que vai ganhar um abraço quando A.B. acabar de pagar seus pecados. Ela calcula que sai no começo de dezembro, quando terá esquecido o dia em que praticou assalto à mão armada.

M.L., de 16 anos, fala com olhar baixo e voz presa. Mas, segundo as amigas, canta com um poder de fazer o pátio da Febem Mooca flutuar. ‘Ela tem muito talento’, dizem as meninas. ‘Mas não sei porque sou assim. Tenho muita vergonha.’ Sua família, sem dinheiro para vir de Batatais, no interior de São Paulo, a visita uma vez por mês. Quando o assunto é liberdade, sua cabeça e sua voz ficam mais baixas. Ela prefere falar de música. ‘Eu fiz três músicas na Febem: ‘Sinto Saudades’, ‘A Chuva’ e ‘Amiga’.

A menina M.L., uma das mais dedicadas do grupo, deixou a Camerata na manhã de sábado, quando uma agente a chamou de canto para dar a notícia: ‘Vá arrumar suas coisas. Você está livre.’

Um outro destino a milhares de guris

O grupo Camerata das Internas da Mooca flutua em um universo formado por mais de 20 mil crianças e adolescentes atendidos por uma iniciativa conhecida como Projeto Guri. Os números de uma entidade que nasceu das idéias de uma mulher impressionam principalmente por um resultado. São ao todo 24.840 crianças, das quais 1.880 internas da Febem. Estão envolvidos no ensino musical 954 funcionários, entre professores, monitores e supervisores que atuam em 106 pólos por todo o Estado e comandam centenas de orquestras.

Claudia Costin, secretária de Cultura, fala sobre o resultado que pode ser considerado a melhor notícia para quem trabalha pelo projeto: entre as crianças do Guri, o nível de prática de crimes e delitos é igual a zero. Não se fala aqui das crianças internas da Febem, naturalmente. Mas dos garotos e garotas que nascem e crescem em bolsões de pobreza como Capão Redondo e Jardim Ângela. Na cidade de Teodoro Sampaio, mais de 700 meninos e meninas de um acampamento de moradores sem terra viajam duas horas para chegar à sede do Guri. Aprendem canto, violino, violão. Ao procurarem o projeto, não têm tempo para sucumbirem ao tráfico e a outros crimes. ‘Falei para minha mãe que era só ir atrás que a gente conseguia’, diz um garoto de 8 anos em um vídeo do projeto.

A ‘mãe’ das 20 mil crianças é Elisabeth Parro. Sozinha, ela acreditou que música poderia mudar destinos. Nos dez anos de criação do Guri, que serão festejados em 2005 com uma série de shows e o lançamento de CDs e DVDs, viu sua criatura crescer e cair nas graças do governo e de patrocinadores como o empresário Antônio Ermírio de Moraes. ‘Começamos da prática para a teoria’, revela um dos segredos do triunfo.

Em 1995, uma grande rebelião na unidade da Febem Tatuapé mostrou que a aprovação vinha também de meninos vistos como seres irrecuperáveis. No tumulto, tudo foi quebrado. Os instrumentos do Guri foram guardados pelos mesmos garotos em cima de um armário.