Concerto de Ortiz é ponto alto do Festival de Campos

Folha de S.Paulo - Segunda-feira, 30 de julho de 2007

seg, 30/07/2007 - 13h16 | Do Portal do Governo

Folha de S.Paulo

Já no terceiro bis, o semitom abrindo o primeiro tema de “Alma Brasileira”, de Villa-Lobos (1887-1959), ecoava o semitom do tema da “Sonata em Lá Menor” de Schubert (1797-1928), no começo da noite. Foi coincidência; mas não existem coincidências, e fazia todo o sentido para fechar um programa tão bem tramado como o da pianista Cristina Ortiz, quarta-feira passada em Campos do Jordão.

Foi assim, por exemplo, que três “Intermezzi” de Brahms (1833-97) viraram uma sonata em três movimentos, como a de Schubert; e que quatro “Estudos” de Chopin (1810-49) compuseram outra sonata: allegro, scherzo, adagio, presto.

Também as outras obras, dois “Impromptus” de Schubert, do op. 90, e duas peças de Debussy (1862-1918), não estavam juntas por acaso, formando unidades tanto do ponto de vista tonal quanto temático e afetivo. No caso de Debussy, isso envolvia ainda uma tácita relação aquática, entre “Reflets Dans l’Eau” (Reflexos n’Água) e “L’Isle Joyeuse” (Ilha Alegre), já que a última foi inspirada num galante “Embarque para Citera” -embarque para a ilha do amor- do pintor setecentista Watteau.

Descrito assim, pode parecer cerebral. Mas a pianista baiana não tem nada de fria; e “cerebral” não seria o termo para definir uma rede tão viva de relações musicais. Para os inspirados padrões de Cristina Ortiz, esse pode não ter sido o concerto mais inspirado; mas estava longe do contrário e teve vários momentos de inspiração.

Ela é sempre mais expressiva nos grandes gestos do que nas filigranas. E arrebatadora nos arrebatamentos. É uma artista do êxtase. Fez ribombar as infinidades do auditório Claudio Santoro no final do Debussy, por exemplo, um dos grandes momentos de plena alegria da história da música. Depois do esforço, ficou ali, bufando e sorrindo, sob a chuva de aplausos.

Vale notar que ela tocou num piano problemático, para dizer pouco, um Steinway que há muito deixou de ser um Steinway. A platéia não era das mais fáceis, com uma alta concentração de colegas, desde o pianista Jean-Louis Steuermann (brasileiro radicado em Londres, como Ortiz) até o maestro Roberto Minczuk, diretor do Festival de Campos do Jordão, passando pelas dezenas de alunos.

Cena entrevista durante o “Impromptu em Sol Bemol” de Schubert: uma menina bem jovem, a mão direita entrelaçada com a do namorado, e a mão esquerda no ar, desenhando a linha de notas, com expressão embevecida. Deve ser bom ter aulas com Cristina Ortiz.

Para quem gosta de música, esse julho em São Paulo foi um deserto molhado. Enquanto isso, nas montanhas de Campos, brilhava o sol quase toda noite nas salas de concerto, depois do calor das aulas. O concerto de Cristina Ortiz -corajosa, chegada na quarta-feira mesmo, depois de 72 horas em trânsito- foi um ponto alto nessa última semana de um Festival que continua dando certo, no país onde as coisas geralmente só têm continuidade no erro.