Cidadania aos quilombolas

Diário do Grande ABC - Santo André - Quinta-feira, 28 de outubro de 2004

qui, 28/10/2004 - 10h14 | Do Portal do Governo

Raul do Valle

Em determinadas fazendas brasileiras, se uma escrava se envolvesse com o seu ‘Senhorio’ e a esposa porventura descobrisse, a pobre mucama era pregada pelo lábio na porta da senzala por vários dias para servir de exemplo às outras negras. Histórias bárbaras como essa, passadas de geração em geração – portanto algumas sem comprovação acadêmica -, só deixam mais claros os motivos que levavam os negros presos e humilhados nas fazendas a fugirem sertão adentro e a procurarem os recantos mais isolados e de difícil acesso para formarem seus quilombos.

Alguns acadêmicos se referiam a essas comunidades como locais em que se escondiam bandidos negros, numa das maiores incompreensões de percepção histórica. Os quilombos eram, na verdade, fortalezas para proteger a liberdade dos negros e permitir que, em meio à hostilidade da sociedade escravista, uma vida digna e mais próxima de sua cultura – primeiro africana e depois afro-brasileira – fosse vivida.

Ainda há espalhadas pelo país inúmeras comunidades quilombolas remanescentes que, da luta contra a escravidão, passaram agora à luta pela preservação da sua história. Elas obtiveram um grande vitória quando a Constituição de 1988 lhes garantiu o direito à posse das terras que ocupam. Mas isto é só o começo.

Os quilombolas do século 21 se esforçam para preservar – ou mesmo recriar – a cultura de seus antepassados e desenvolver a economia de suas comunidades, em especial a agricultura. O objetivo é garantir o direito a uma vida digna, cujo poder aquisitivo esteja acima da pura subsistência.

Uma pesquisa a respeito desse tema realizada pelo Instituto Federal Socioambiental indicou que apenas 1% das comunidades quilombolas possuem título de propriedade. Ou seja, de todas as 2 mil comunidades quilombolas existentes no Brasil, pouco menos de 30 possuem suas terras tituladas. A pesquisa é datada de setembro de 2003 e demonstra o enorme desafio que temos que assumir a favor da preservação da nossa cultura afro-descendente.

Um exemplo de que o trabalho conjunto pode trazer excelentes resultados é o Programa Pró-Lar Moradias Quilombolas, do governo de São Paulo. Ele foi desenvolvido para promover melhores condições habitacionais às comunidades quilombolas da região. O projeto é uma iniciativa da Secretaria de Estado da Habitação, por meio da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), em parceria com a Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania e com os municípios.

Trata-se de uma iniciativa pioneira que promove o resgate dos valores históricos dos quilombolas e a valorização de suas manifestações culturais, bem como a preservação de seus usos e costumes. A atuação do programa é voltada para comunidades reconhecidas e indicadas pelo Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo).

Já foram firmados protocolos de intenções com sete prefeituras para a construção de 708 moradias. Os acordos beneficiam 17 comunidades quilombolas no Estado e as casas serão implantadas em duas etapas. Primeiro serão atendidas 150 famílias que vivem em quatro comunidades que já receberam o título de domínio de suas terras nos municípios de Iporanga e Eldorado. Depois será a vez das comunidades cujas terras ainda estão em processo de titulação. Nessa etapa serão construídas 558 moradias em 13 comunidades localizadas em Eldorado, Salto de Pirapora, Ubatuba, Itapeva, Iporanga, Iguape e Cananéia.

Esse trabalho demonstra que, com a mobilização de todos, estamos conseguindo pontuar algumas soluções. A história dos quilombos só pode ser compreendida olhando-se para trás, remetendo-se à origem dos fatos. Mas ela só poderá ser revivida se voltarmos os nossos olhos para o futuro.