Chegou a hora da estrela

Valor Econômico - Sexta-feira, 9 de março de 2007

sex, 09/03/2007 - 12h13 | Do Portal do Governo

Do Valor Econômico

“Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo mas que pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo (…) Tudo que fiz tinha como núcleo minha real união com o país e que não possuo, nem elegeria, outra pátria senão o Brasil. Poderei trabalhar, formar-me, fazer os indispensáveis projetos para o futuro, com segurança e estabilidade. A assinatura de V. Exª tornará de direito uma situação de fato. Creia-me, Senhor Presidente, ela alargará minha vida. E um dia saberei provar que não a usei inutilmente.”

O trecho é de uma das cartas escritas, em 1942, ao então presidente da República Getúlio Vargas. Clarice Lispector, a autora, emergiria como um dos principais nomes da literatura brasileira ainda às voltas com sua condição de “não naturalizada”. Naquele mesmo ano, escreveria seu primeiro romance, “Perto do Coração Selvagem”, e receberia seu primeiro registro profissional como jornalista.

O documento poderá ser exposto na montagem sobre a escritora que estará aberta ao público no Museu da Língua Portuguesa a partir da primeira semana de abril. Ocupará o piso das exposições temporárias, que até o dia 28 contou com a montagem em torno do “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. Depois de ter sido vista por 565.173 pessoas em São Paulo, a exposição vai desembarcar no Museu no Paço Imperial, no Rio, a partir de maio.

A exposição sobre Clarice Lispector abrirá as comemorações dos 30 anos da morte da escritora, nascida numa aldeia na Ucrânia, durante a jornada de seus pais a caminho do Brasil, em algum dia próximo a 10 de dezembro de 1920, data que adotou para seu nascimento.

A exposição terá a curadoria de Júlia Peregrino e a cenografia de Daniela Thomas. Além de manuscritos e cartas, a mostra, segundo o diretor do museu, Antonio Sartini, vai se valer de recursos para mostrar o cotidiano revelado em suas crônicas – seu relacionamento com os filhos Pedro e Paulo, sua relação mesclada de culpa com as empregadas (“trivial, não, senhora. Só sei fazer comida de pobre”) e suas conversas com os motoristas de táxi.

Também devem ser exibidos trechos de sua última entrevista, concedida à TV Cultura em fevereiro de 1977, sob a condição de que apenas fosse ao ar depois de sua morte. Ela não sabia, na época, que um câncer no útero já marcara a data para dezembro daquele ano, às vésperas de seu 57º aniversário.

Nessa entrevista, Clarice começa a falar com um sotaque indistinguível que o apresentador questiona se decorrente dos seus pais russos ou de sua infância entre Maceió e Recife. Sua biógrafa, Nádia Gotlieb, logo esclarece: era língua presa mesmo.

Durante a entrevista, fica todo o tempo segurando um maço de Hollywood no colo. Diz que se considera uma escritora amadora que escreve simples. Só tem um conto que não compreende – “O Ovo e a Galinha” (1975). É dele também que mais gosta. Tinha acabado de terminar seu último romance, “A Hora da Estrela”, mas ainda não o havia titulado. Diz que é a história de uma moça tão pobre que só come cachorro-quente, personagem que criou depois de uma visita a São Cristóvão, bairro de migrantes nordestinos no Rio. “É a história de uma inocência pisada, de uma miséria anônima.”

O entrevistador pergunta o que gostaria de mudar no mundo. Ela não pára para responder: “Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada… Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro.”