As vinganças do riso

Gazeta Mercantil - Sexta-feira, 4 de junho de 2004

sex, 04/06/2004 - 9h02 | Do Portal do Governo

Elaine Bittencourt

Bem-humorados, irônicos, críticos, os cartunistas sempre tiveram um papel importante na vida nacional. Prova disso, é a vitalidade do Salão de Humor de Piracicaba, que em agosto realiza sua 31 edição, para o qual já estão abertas as inscrições. Antes, porém, a capital paulista poderá ter uma prévia do que costuma acontecer no evento, em uma exposição comemorativa dos seus 30 anos de história, realizada no Memorial da América Latina, que irá mostrar 50 originais premiados e cartazes de todos os anos, além de atas e súmulas do julgamentos do júri do primeiro Salão. Além disso, a Imprensa Oficial acaba de lançar ‘Piracicaba 30 Anos de Humor’, volume ricamente ilustrado com as charges e caricaturas de todo este período, organizado por Paulo Caruso.

Como o prêmio do Salão sempre foi aquisitivo, nestas três décadas, a Secretaria de Cultura de Piracicaba acumulou um significativo acervo de cartunismo, ao qual Caruso recorreu para organizar tanto o livro, como a exposição, que pela primeira vez traz essas obras a São Paulo. No primeiro, ele apresenta todos os premiados do Salão, cerca de 300 trabalhos. Para a mostra, entretanto, ele fez uma seleção e escolheu 50 desenhos. A concepção da curadoria foi mostrar as peças representativas dos vários períodos do cartunismo brasileiro. ‘No começo, os salões foram marcados pela política, e em seguida surgiram outros temas, as figuras caricatas, a ecologia, o comportamento’, diz Caruso. Ele lembra, ainda, a significativa participação dos profissionais do Leste Europeu, que, em determinada época, desenvolveram obras interessantes sobre o fim do Comunismo na região. Mas nem só os temas se transformaram. Antes quase inexistente, a caricatura se impõe a partir dos anos 90, quando surgem talentos como o baiano Gonzalo Carcamo Luna e o paulista Dalcio Machado.

O livro apresenta ainda uma vasta seleção de fotografias e documentos, alguns dos quais também estarão presentes na exposição. A mostra traz, inclusive, uma curiosidade: o mural da Choperia Canecão, feito em afresco, e destruído quando esta se transformou em casa de shows. A obra, de 180 metros quadrados, foi recriada em um plotter de lona vinílica e foi apresentada ao público uma única vez no Salão de 2001.

O Memorial da América Latina promove, junto à mostra, uma série de eventos ligados ao cartunismo. O tema será discutido em mesas-redondas, durante todo o mês, sempre às quintas-feiras, às 11h. Haverá ainda, o show ‘Deu no New York Times’, apresentado por Laerte Sarrumor e Língua de Trapo, Jyca & Turcão e Conjunto Nacional (integrado por Chico e Paulo Caruso e Aroeira).

Criado em 1974, quando a censura se tornava mais rigorosa, o Salão de Humor de Piracicaba, desde o início, foi um evento representativo, sobretudo por conseguir, a despeito das dificuldades, ser um local de expressão. De certa maneira, era uma resposta bem-humorada à repressão. Entretanto, a princípio, os organizadores não foram tão ambiciosos. Eram jovens de Piracicaba que decidiram aproveitar a verba de um evento que a prefeitura não realizara. Concluíram que seria interessante fazer uma exposição sobre humor. A idéia de levar cartunistas de todo o País para Piracicaba, no interior paulista, era inusitada, mas eles decidiram correr o risco. Um risco, por sinal, considerável, pois na época havia um preconceito, principalmente no interior, contra a arte não-acadêmica.

Superadas as dificuldades, conseguiram que o primeiro Salão contasse com presenças ilustres, como Millôr, Ziraldo, Zélio, Jaguar e Fortuna. Um sinal de que o evento estava fadado ao sucesso. A segunda edição foi mais incrementada, com shows, mostras paralelas e abertura à participação de estrangeiros, este último item, uma forma não só de intercâmbio, mas também de limitar a ação repressiva do regime militar.

Com o tempo, o prestígio foi aumentando cada vez mais, assim como o número de inscritos. Como escreve João Maffeis Neto em ‘Piracicaba 30 Anos de Humor’: ‘De ano para ano, o Salão procurou modernizar-se, adaptando-se às inovações gráficas, porém sem esquecer e valorizar a tradição do cartunismo ao longo da história do Brasil e do mundo’.

O Salão de Humor de Piracicaba transformou-se, principalmente, num espaço importante para os artistas num momento em que a imprensa não mais se oferece como um amplo espaço para estes profissionais . ‘O Salão promove os jovens artistas. É um canal de expressão diferente do que tínhamos até então. Alguns artistas vivem só de salões, não precisam publicar’, afirma Paulo Caruso.

O balzaquiano Salão conquistou respeitabilidade até mesmo internacionalmente. Além disso, repercutiu positivamente entre os profissionais brasileiros, inspirando a criação de outros salões de humor em várias regiões do Brasil, como em Recife, Porto Alegre e Rio de Janeiro. Curiosamente, lamenta Caruso, isso não se reflete na mídia como antigamente. Antes, provavelmente pelo apelo político, o evento era destaque nos principais jornais do País. Hoje, é bem mais difícil. Mesmo assim, ainda é um espaço privilegiado, que promove encontros importantes de profissionais com interesses em comum. Tal como aconteceu com o próprio Caruso, que só ali, na pequena cidade do interior, há 29 anos, pôde conhecer seus ídolos. ‘Antes, nem me deixavam entrar nas redações’, lembra o cartunista, que desde a segunda edição do Salão nunca mais deixou de marcar presença no evento.