As empresas e o dever da transparência

Folha de S. Paulo - Tendências/Debates - Segunda-feira, 9 de julho de 2004

seg, 09/08/2004 - 9h12 | Do Portal do Governo

HUBERT ALQUÉRES

As listas das maiores e melhores empresas do Brasil em 2003 começam a ser publicadas. Já está nas bancas, por exemplo, a edição especial ‘Valor 1000’, do jornal ‘Valor’, com a relação das mil maiores empresas sediadas no país. Quem percorrer o ranking verificará, com surpresa, que a publicação não conseguiu os dados necessários para avaliar a situação econômico-financeira de várias empresas privadas de grande porte. Teve de se limitar à receita líquida, informada pelas empresas ou estimada pela própria publicação. Faltaram dados relativos a lucro, patrimônio, rentabilidade ou endividamento, por exemplo.

Foi o que aconteceu com a Shell, a sexta empresa do país e a terceira no comércio atacadista; com a Volkswagen, a sétima empresa do país e a primeira do setor automotivo; com a Nokia, a 44ª do país e a primeira do ramo eletroeletrônico; com a Unilever, a 45ª do país e a maior do setor de produtos cosméticos e farmacêuticos; e com a HP Brasil, a 69ª do país e a primeira da área de tecnologia da informação. Ocorreu o mesmo com a empresa Carrefour, a 15ª do país e a segunda do comércio varejista, e com outras tantas. Problemas semelhantes foram enfrentados pela revista ‘Exame’ para a elaboração de sua lista das cem melhores.

O motivo da falta dos dados: desde 1980, as maiores companhias privadas, principalmente transnacionais, transformaram-se em sociedades limitadas, buscando fugir à obrigação legal, imposta às sociedades anônimas, de publicar seus balanços anuais no ‘Diário Oficial’ do Estado em que têm sede e num jornal de grande circulação.

Exige-se, com razão, que os atos do poder público sejam cada vez mais transparentes, para que a sociedade civil possa controlá-los. O mesmo deveria se aplicar às empresas privadas mais poderosas, como as citadas, que interferem na vida do país de forma também extensa e com conseqüências para uma grande rede de atividades. Elas produzem bens e serviços importantes, empregam milhares de trabalhadores, compram insumos de outras empresas, respondem por uma parcela significativa dos tributos arrecadados, contraem empréstimos com bancos privados e públicos e captam recursos no mercado de capitais. Portanto é legítimo e necessário que a sociedade brasileira conheça a situação patrimonial e operacional dessas grandes empresas.

A lei impõe às sociedades anônimas, desde as primeiras décadas do século passado, a obrigatoriedade da publicação de seus balanços. Em 2000, para reforçar essa obrigação e impedir que fosse driblada, o governo Fernando Henrique enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei, nº 3.741, com dois propósitos básicos: tornar mais claras e compreensíveis as demonstrações financeiras das empresas, uniformizando as regras de sua elaboração de acordo com padrões de contabilidade aceitos no âmbito nacional e internacional; e estender a exigência de publicação dos balanços às empresas limitadas de grande porte. As grandes limitadas não perderam tempo e rapidamente propuseram emendas ao texto. Se aprovadas pela Câmara dos Deputados, desfigurarão o projeto governamental e seus objetivos.

Alega-se, nos termos da justificativa de uma dessas emendas, que ‘os negócios de uma limitada interessam exclusivamente aos seus quotistas’.

Ocorre que o novo Código Civil brasileiro tem outro entendimento. Consagra a figura da empresa como irradiadora de direitos e obrigações independentemente de ser sociedade anônima ou limitada. Além disso, uma empresa limitada de grande porte não pode ser equiparada a uma padaria de bairro ou ao bar da esquina. Por definição, o alcance de uma pequena empresa é restrito. Se fecha suas portas, não gera uma reação em cadeia, como ocorre com grandes empresas. Se manipula suas contas, não prejudica os investidores. Outro é o raio de influência de uma sociedade limitada poderosa. É insólito afirmar que seus negócios interessam apenas aos sócios. Que o digam os funcionários, fornecedores e consumidores da Enron e da WorldCom nos Estados Unidos, ou da Parmalat na Itália e no Brasil.

Quanto ao argumento de que a reprodução dos balanços através da rede mundial de computadores representaria um meio mais ágil de divulgação, não leva em conta a necessidade de segurança e preservação dos direitos de terceiros e desconhece os avanços tecnológicos das imprensas oficiais. No Estado de São Paulo, por exemplo, o ‘Diário Oficial’ conta com uma edição eletrônica há vários anos, que pode ser objeto de consulta gratuita e instantânea. Todos os atos societários publicados nos últimos dez anos, inclusive as demonstrações financeiras das sociedades anônimas, estão digitalizados, podendo ser acessados via internet, sem ônus. Com os dados centralizados, a consulta é fácil e segura.

Além disso, a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, como autoridade certificadora eletrônica, pode emitir cópias certificadas desses documentos.

Se as tais emendas ao projeto de lei 3.741 forem aprovadas, a transparência dos balanços e de outros atos das grandes sociedades limitadas continuará inexistente e, assim, o controle jurídico e social dessas empresas será prejudicado e o conhecimento dos setores econômicos em que elas atuam, dificultado. O país regredirá na segurança jurídica e na democratização de informações vitais, jogando por terra o teor básico e o espírito original do projeto, que pretende garantir os direitos de terceiros e da sociedade, trabalhadores e investidores.

Hubert Alquéres, 45, engenheiro civil, é diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e presidente da Associação Brasileira de Imprensas Oficiais.