Ano decisivo para a saúde brasileira

Diário do Grande ABC - Sábado, 24 de janeiro de 2004

seg, 26/01/2004 - 14h26 | Do Portal do Governo

Luiz Roberto Barradas Barata

É com um misto de expectativa e pragmatismo que apostamos em 2004 como o ano decisivo para o SUS (Sistema Único de Saúde) no Brasil. Para entender: este é o ano em que União, Estados e municípios atingem, teoricamente, o percentual máximo de investimento em saúde definido pela Emenda Constitucional n.º 29, de 2000.

A lei define que o governo federal deve aplicar o mesmo percentual do ano anterior acrescido da variação do PIB (Produto Interno Bruto). Já as esferas estaduais e municipais devem destinar, respectivamente, 12% e 15% de suas receitas orçamentárias para a área da saúde. O aumento foi estabelecido como progressivo a cada ano, alcançando em 2004 o teto definido pela legislação.

Se, por um lado, esta é indubitavelmente uma boa notícia, por outro nos causa extrema preocupação a postura de alguns governantes, que vêm procurando sistematicamente descumprir a emenda e investir aquém do mínimo necessário para garantir o acesso universal da população aos serviços de saúde.

Importante notar, entretanto, que esse quadro não é geral. Falando por São Paulo, podemos afirmar, com certa ponta de orgulho, que o Estado investiu em saúde, nos últimos quatro anos, sempre mais do que o exigido pela lei. O orçamento da saúde pulou de R$ 4,1 bilhões em 2003 para R$ 4,8 bilhões neste ano, acompanhando a progressividade concebida pela Emenda Constitucional.

Com esse incremento constante foi possível, ao longo dos últimos anos, a inauguração de 15 novos hospitais, a ampliação da assistência farmacêutica gratuita através do programa “Dose Certa” e da distribuição de medicamentos de alto custo, além do fundamental auxílio financeiro às santas casas do Estado, que receberam do governo paulista, nos últimos oito anos, cerca de R$ 800 milhões para custeio e novos investimentos.

Tudo isso permitiu um avanço sem precedentes nos indicadores de saúde do Estado, onde a esperança de vida atingiu 70 anos, a mortalidade infantil caiu para 14 crianças para cada 1000 nascidas vivas e onde há mais de 180 cidades com mortalidade infantil menor do que 10 por 1000, ou seja, equivalente a índices de países europeus.

Para os próximos anos, a melhoria se dará na recuperação e ampliação dos cerca de 40 hospitais estaduais e na implantação de novos equipamentos e serviços de saúde junto às entidades filantrópicas, sobretudo no interior, aproveitando as estruturas já existentes para ampliar e melhorar o atendimento à população dentro de sua própria região.

Paralelamente, e na ordem do dia, está a necessidade de melhorar a remuneração das consultas, cirurgias, exames e outros procedimentos realizados pelo SUS. A defasagem na tabela do Ministério da Saúde tem levado hospitais, sobretudo as santas casas e hospitais beneficentes – alguns dos quais em situação pré-falimentar – a suspender ou reduzir internações, prejudicando milhares de pessoas que têm a rede pública de saúde como única alternativa viável de atendimento.

Julgamos oportuno, portanto, tocarmos novamente nesta tecla e reiterarmos o apelo para o bom senso das autoridades federais. A premissa é básica: diante do desemprego crescente e do cenário de retração da economia, cada vez mais brasileiros estão migrando para o SUS. Precisam, evidentemente, de atendimento ágil e de qualidade, o que é impensável sem a justa remuneração dos hospitais e entidades que atualmente atendem ao sistema.

Apenas como exemplo, o SUS hoje paga R$ 11 por um ultra-som, exame que custa aos hospitais em torno de R$ 45,00. Já um parto, que representa um gesto médio de R$ 500, é remunerado em apenas R$ 300 pelo Ministério da Saúde.

Igualmente vital, conforme discussões exaustivamente mantidas durante a última Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, é a necessidade de ampliar os recursos destinados à área da atenção básica. Vivemos hoje uma espécie de “inversão de valores” na rede pública de saúde, em que um número expressivo de pacientes é encaminhado, por vezes desnecessariamente, aos níveis de média e alta complexidade, o que traz dois inconvenientes ao SUS: lentidão e custos mais altos.

Não é de hoje que acompanhamos a preocupante situação das Unidades Básicas de Saúde, de responsabilidade dos municípios. Nas cidades paulistas é comum a falta de clínicos gerais e de médicos de família. As consultas também costumam ser demasiadamente rápidas. Não são raros os casos, por exemplo, em que o paciente com uma simples tendinite é encaminhado sem necessidade a um ortopedista num hospital regional ou a um complexo exame de ressonância magnética.

A conseqüência inevitável é que os usuários do SUS passam a viver uma verdadeira via crucis, tendo que se deslocar a outras cidades quando o problema poderia ser muito bem resolvido com um atendimento primário de qualidade em seu próprio município. Há, ainda, um agravante: a lentidão causada pelo inchaço dos níveis de média e alta complexidades pode comprometer a pronta recuperação desses pacientes. Tornou-se imperativo e urgente corrigir essa distorção.

Assim como a imensa maioria dos profissionais de saúde deste país, depositamos nossas esperanças no SUS. Os brasileiros que já utilizam a rede pública aprovam o sistema, que tem um índice de satisfação de 72% dentre aqueles que foram internados ou já tiveram um familiar internado. Depois de 15 anos de existência, o SUS carece, além de mais recursos, da efetiva integração e sintonia entre as três esferas de governo para ser, de fato, o maior, mais democrático e melhor plano de saúde do Brasil.

Luiz Roberto Barradas Barata, 50, é médico sanitarista e secretário de Estado da Saúde de São Paulo