A vida contada por dois mestres

Valor

sex, 18/09/2009 - 8h20 | Do Portal do Governo

Livros recém-lançados trazem os depoimentos autobiográficos de Eduardo Coutinho e Vladimir Carvalho, grandes documentaristas brasileiros 

Abra espaço em sua agenda e lugar na estante. Dois volumes obrigatórios trazem, pelas próprias palavras, dois dos principais cineastas brasileiros contemporâneos, ambos documentaristas: Eduardo Coutinho e Vladimir Carvalho. 

“Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas no Planalto” estrutura em deliciosa narrativa corrida uma série de depoimentos autobiográficos concedidos ao crítico Carlos Alberto Mattos, dentro da coleção “Aplauso”, da Imprensa Oficial (326 págs., R$ 15,00). Já para a coleção “Encontros”, da Azougue Editorial (224 págs., R$ 24,90), o crítico e cineasta Felipe Bragança reuniu dez entrevistas e um raríssimo texto de Coutinho. 

O foco na palavra dos realizadores é o elo comum de livros muito distintos. O primeiro é uma quase autobiografia. O segundo, uma panorâmica sobre as mais marcantes intervenções orais (com a exceção citada) de Coutinho durante momentos cruciais, em geral o lançamento de filmes, do último quarto de século de sua carreira. 

As trajetórias de Carvalho e Coutinho se cruzaram logo na juventude, quando o projeto do primeiro – e então ficcional – “Cabra Marcado para Morrer” foi frustrado pelo golpe de 1964. Foi o cineasta paraibano que apresentou ao colega paulista (já sediado no Rio) a protagonista Elisabete Teixeira, viúva do líder camponês João Pedro, assassinado em 1962. Coutinho convidou então Carvalho “a integrar a equipe”. A parceria para as filmagens se transformou em cumplicidade para a fuga à repressão. Vinte anos mais tarde, Carvalho foi essencial para que Coutinho conseguisse realizar “Cabra Marcado para Morrer”, já como documentário. 

Revelações memorialísticas e anedotas de bastidores como essas marcam os dois livros. Coutinho, por exemplo, conta como foi ainda em seus tempos de “Globo Repórter”, na áurea fase inicial do programa, em meados dos anos 1970, que foi fisgado pelo dispositivo da entrevista, transformada por ele, apenas no fim dos anos 90, no centro de sua obra (“Santo Forte”). Guardarei ao leitor o prazer dessas descobertas. 

Encantam-me especialmente nesses livros os momentos em que o diretor de “O País de São Saruê” e o de “Edifício Master” abrem o peito para se definirem como cineastas. São trechos que valem um curso de cinema. 

Assim falou Coutinho: “O cinema lida com o concreto, com o sujo. O concreto o que é? É o que aparece. Tem gente que diz: ‘As aparências enganam’. Eu diria o contrário. Eu quero as aparências. Esse é o lugar em que o cinema me interessa (…) Se não houvesse superfície, não tinha o mundo, não é? O mundo não ia existir. Como é que você ia pensar o mundo? É um pouco isso. E aí toda essa noção sobre fórmula no fundo é o seguinte: eu trabalho com formas que existem exacerbadas, revendo meus filmes sempre no mesmo. Então, no fundo, é tentar fazer o mesmo filme diferente, a mesma superfície. (…) Eu sou o melhor documentarista de mim mesmo. (…) Dentro do que eu posso ser, a vida que eu tenho, as possibilidades que eu posso ter, eu consegui voltar a fazer cinema e ser o melhor em mim mesmo”. 

E assim falou Carvalho: “Costumo dizer que sou um simples documentarista, não um diretor de cinema. Logicamente é uma frase de efeito. Uso-a para distinguir-me dos que fetichizam o cinema, especialmente o de ficção. (…) Já me defini como um ‘lambe-lambe do documentário’ e um ‘cronista social dos pobres’, muito em função de aliar-me ao repertório do povo. Não escolhi os pobres, mas eles estavam aí, desde a minha infância. (…) Não sei se faço um tipo particular de documentário. Se fui despertado pelo modelo dramatizado de Flaherty, logo topei com a revolução promovida por Dziga Vertov, um caminho que, infelizmente, foi interceptado. Vertov representou uma experiência vital e riquíssima, interrompida pelo stalinismo. Basta ver ‘O Homem com a Câmera’, que continua moderníssimo, absolutamente contemporâneo. Tinha a ver com a música e a poesia, não com a narrativa prosaica”. 

Aos 76 anos, Eduardo Coutinho acaba de lançar “Moscou”, uma de suas obras mais poéticas e arrojadas. Sobre esse projeto, quando ainda em gestação, disse a Bragança na entrevista inédita que fecha o volume: “É realmente um desafio, porque o ponto de partida é muito mais intelectual do que os meus outros filmes, sabe?” 

Vladimir Carvalho, de 74, desenvolve no momento um antigo projeto que espera ver a luz em 2010, no cinquentenário de Brasília. A partir de registros gravados nos anos 80, pretende investigar “os primórdios do rock-Brasília”: Plebe Rude, Capital Inicial, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Detrito Federal. “Nunca fui um fã de rock, mas aprendi a admirar as letras fortes e a musicalidade encorpada de Renato Russo”, conta a Mattos.