A prisão de onde ninguém quer fugir

Jornal da Tarde - Domingo - 7 de agosto de 2005

dom, 07/08/2005 - 15h28 | Do Portal do Governo

No Centro de Ressocialização de Limeira, não há grades e cada detento é chamado pelo nome. O homem que controla a portaria, por exemplo, cumpre pena por roubo seguido de morte e está condenado a 22 anos, mas não vive confinado

Por Bruno Tavares

O homem que controla a portaria da penitenciária está condenado a 22 anos de prisão por latrocínio (roubo seguido de morte). Se estivesse cumprindo pena em um presídio qualquer, Genésio Betonte, 44 anos, ficaria confinado em uma cela, sob vigilância constante de guardas armados de espingarda calibre 12. Perante os funcionários, ele seria apenas o 185686-3, número de sua matrícula no sistema prisional. E dificilmente sentiria o gosto da liberdade, vendo gente livre caminhando nas ruas.

Mas, no Centro de Ressocialização CR de Limeira, cidade a 156 km de São Paulo, é diferente. Ali não há muralhas, bloqueadores de celular e nem cachorros ferozes pelos corredores. Os 207 reeducandos são chamados por seus nomes, e assim devem tratar uns aos outros (apelidos pejorativos, os chamados vulgos, são proibidos). Em janeiro, a direção da unidade também resolveu abolir a obrigatoriedade do uniforme, embora muitos ainda usem as calças bege.

‘Percebi que, com os uniformes, os reeducandos assumem outra personalidade. E, quando estiverem lá fora, eles estarão vestidos como qualquer pessoa’, argumenta Reginaldo Alves Boschi, diretor do CR. Os detentos não são os únicos a ter regalias incomuns para os padrões do sistema penitenciário. No CR, as visitas passam pelo detector de metais e revista superficial, como a que os PMs fazem em estádios de futebol. As mulheres não precisam tirar a roupa e nem se submeter à constrangedora revista íntima.

Só há uma cela em toda a unidade, que raramente recebe hóspedes. O xadrez – uma espécie de suíte com chuveiro quente e dois beliches de cada lado – só é usado em duas situações: durante o período de inclusão dos novatos e quando algum detento merece punição. ‘Chamamos aqui de ‘sala de reflexão’, brinca o diretor.

Os reeducandos dormem em alojamentos sem grades – exceto nas janelas. Os quartos são relativamente amplos, bem iluminados e ficam abertos 24 horas por dia. Possuem quatro treliches de concreto, uma TV 14 polegadas suspensa por suporte e doze pequenos armários, um para cada morador. Também existem dois alojamentos especiais com banheiros adaptados para deficientes físicos. As refeições são servidas num refeitório. E o cardápio é variado, às vezes com feijoada e lasanha. O acesso ao orelhão da unidade é livre.

São tantas as diferenças de um CR para uma penitenciária comum que ‘chovem’ pedidos de transferência – em Limeira, a média é de 50 solicitações por semana. Mas, antes desfrutar dos benefícios, o reeducando tem de ser aprovado em uma entrevista. A equipe do CR – formada por psicólogo, assistente social e agente de segurança – vai pessoalmente conversar com o detento que pediu a vaga. Explica o funcionamento da unidade e faz uma série de perguntas. O objetivo é um só: saber se aquela pessoa quer mesmo mudar de vida.

O reeducando que tem seu pedido de transferência aceito ainda passa por algumas ‘provações’. Ao entrar no CR, ele vai trabalhar na tranca, abrindo e fechando as grades. Depois, é colocado para lavar as viaturas e veículos oficiais. ‘Se o reeducando resiste a essas tarefas é porque não está preparado para ficar na unidade’, diz Boschi. Também é um indício de que ele pode voltar a cometer delitos. No mundo do crime, quem cumpriu pena em CR passa a ser discriminado pelo companheiros por ter feito ‘serviços de polícia’.

Ao contrário das demais unidades prisionais do Estado, os CRs são administrados em parceria com a Apare, uma organização não-governamental que gerencia os recursos repassados pelo governo para o pagamento de médicos, psicólogos, dentistas e assistentes sociais. Dessa forma, um reeducando no CR custa 30% menos (R$ 500) aos cofres públicos do que o detento de um presídio comum (R$ 700). Todo o serviço de manutenção é feito pelos reeducandos. A segurança e disciplina ficam sob responsabilidade do Estado. Mas, ainda assim, o número de agentes penitenciários é mínimo.

‘Às vezes ficam dois funcionários tomando conta de 200 presos’, revela o diretor. De 2004 até hoje houve três fugas no CR de Limeira, todas ‘pacíficas’, sem motins ou reféns. Quem comete deslizes ou recebe a liberdade e volta a ser condenado sabe que jamais retornará à unidade. Mas, ali, ninguém gosta de pensar nisso.

Outras cinco unidades serão construídas

Desde 2000, a Secretaria de Administração Penitenciária SAP inaugurou 21 Centros de Ressocialização CR no Estado de São Paulo, cada um deles com capacidade para 210 detentos. O governo do Estado também liberou recursos para a construção de outras cinco unidades e autorizou a transformação da cadeia pública de Ourinhos em CR. Os novos prédios poderão abrigar até 300 reeducandos.

‘Penso que todas as cidades com mais de 100 mil habitantes deveriam ter uma unidade dessas’, diz o secretário da Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa. Mas, para isso, é preciso que a comunidade local se preocupe com a recuperação dos criminosos e crie ONGs dispostas a firmar parceria com a SAP. ‘A intenção de fundar uma organização não-governamental tem de partir da sociedade. A experiência mostra que, quando elas são criadas por nós, não dá certo’, comenta Furukawa.

Na avaliação do secretário, os CRs têm cumprido seu papel. Ele diz que o índice de reincidência no regime tradicional é de 58%, enquanto no dos CRs é de 10% a 15%. ‘É importante destacar que esse projeto só tem cinco anos. E, portanto, esses números não são definitivos, tendem a cair ainda mais.’ Até hoje, a SAP nunca registrou homicídios nos CRs. E, de acordo com o secretário, houve apenas um motim, no CR de Presidente Prudente.

A promotora Ana Lúcia Menezes Vieira, das Execuções Criminais da Capital, comenta que, no começo, ficou assustada com a pouca segurança dos CRs. ‘Mas, aos poucos, comecei a perceber que esse excesso de liberdade cria um maior sentimento de responsabilidade no preso.’
Na opinião dela, todos os detentos condenados por delitos de natureza leve – como furto, estelionato e até alguns casos de roubo – deveriam cumprir pena em CRs. ‘Essas unidades possibilitam um maior contato do reeducando com sua família, o que é fundamental no processo de ressocialização’, comenta a promotora.

O juiz corredor de Limeira, Luiz Augusto Barrichello Neto, também aprova os CRs. Mas faz uma advertência: ‘Como a decisão sobre a transferência do preso cabe apenas à ONG e à direção da unidade, pode haver desigualdade no critério de seleção’. O juiz já recebeu denúncias de que pessoas teriam corrompido funcionários para entrar no CR. Até hoje, porém, nada ficou comprovado.

‘O projeto é excelente. Mas por que essas unidades são tão boas e as outras não?’ Segundo ele, toda vez que existe um lugar melhor do que os outros há risco de haver corrupção ou tráfico de influência. Para o juiz corregedor, o único modo de resolver o problema é equiparando as condições de todo o sistema penitenciário.