O reconhecimento das áreas remanescentes de quilombos tem também o efeito de uma reforma agrária
Hédio Silva Jr.
No início do mês de junho, os moradores da área remanescente do Quilombo de Caçandoca, em Ubatuba, no Litoral Norte, conseguiram a mais importante vitória desde que seus ancestrais se rebelaram contra a escravidão. A partir de uma ação proposta pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, uma decisão judicial garantiu a eles a permanência no local até que seja concluído o processo de titulação da área, que está em tramitação. Então, serão legítimos donos das terras em que vivem.
A comunidade de Caçandoca estava sob ameaça de despejo desde que uma incorporadora da cidade obteve liminar determinando a reintegração de posse de parte da área ocupada pelos remanescentes do quilombo. Graças à pronta ação do Instituto de Terras do Estado (Itesp), órgão ligado à Secretaria da Justiça, a situação foi revertida e a permanência das famílias no local está garantida.
Os direitos dos quilombolas são a única forma expressa de reparação de perdas coletivas por motivação étnica determinada pela Constituição de 1988. A preservação dessas comunidades representa hoje uma das mais importantes iniciativas do Estado brasileiro no sentido de preservação cultural e histórica, bem como no esforço pela construção da plena democracia e da identidade nacional.
A iniciativa de dar à questão caráter constitucional buscou assegurar aos habitantes dos quilombos o direito à terra em que vivem há gerações. A necessidade de inserção dessas garantias no texto legal respondeu às ameaças e pressões que as comunidades sofreram desde seu surgimento.
A própria população de Caçandoca é exemplo do tipo de hostilidades que os quilombolas têm sofrido. Na década de 1970, a vila chegou a ser alvo de um incêndio criminoso que resultou na morte de duas crianças e obrigou várias famílias a abandonar suas terras.
Por tudo isso, e apesar de o ensino da parte africana da História do Brasil ainda ser incipiente, os quilombos tornaram-se um dos mais fortes símbolos da luta pela liberdade no País. Podemos afirmar, sem medo de errar, que todo brasileiro sabe o que significou a saga dos primeiros quilombolas e sua determinação de enfrentar todos os riscos para alcançar a liberdade. Hoje, os quilombos são um exemplo de inconformismo contra a injustiça e a opressão.
Mas não é só. O patrimônio legado por esses africanos-brasileiros a seus descendentes e a toda a sociedade é imenso. A começar por sua organização social peculiar, de forte sentido coletivo, as comunidades quilombolas espalhadas pelo País mantêm vivos dialetos e mesmo línguas próprias, além de hábitos culturais riquíssimos.
O reconhecimento das áreas remanescentes de quilombos tem também o efeito de uma reforma agrária – neste caso, porém, com característica muito peculiar, pois, em vez de entregar terras a quem não tem, garante sua posse a famílias que correm o risco de perdê-las. Hoje estima-se que existam em todo o País cerca de 1 milhão de quilombolas vivendo em 2 mil comunidades, 400 delas apenas no Maranhão – mas apenas 119 já obtiveram a titulação definitiva.
Por isso, o governo do Estado vem dirigindo todos os esforços que têm à mão para a regularização das 48 áreas de quilombos situadas em território paulista. Por determinação do governador Geraldo Alckmin, a Secretaria da Justiça e o Itesp trabalham intensamente para reconhecer, regularizar e titular essas terras.
Simultaneamente, têm sido oferecidas às comunidades ferramentas para garantir sua subsistência com qualidade de vida e o pleno exercício da cidadania: cursos profissionalizantes para os jovens com ênfase na economia regional; formação técnica, em especial para as atividades agrícolas; apoio a iniciativas produtivas; e suporte nas áreas de saúde e educação básica.
A preservação da herança quilombola, entende o governo do Estado, atende não apenas a uma demanda social. Ela é fundamental para a completa compreensão da História do Brasil e para a preservação de um importante patrimônio cultural num momento em que o País inicia um amplo debate sobre o combate à desigualdade racial e sobre a reparação das perdas históricas.
Hédio Silva Jr. é secretário de Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo