A lição da dúvida, por Machado de Assis

O Estado de S.Paulo - Segunda-feira, 14 de julho de 2008

seg, 14/07/2008 - 8h51 | Do Portal do Governo

O Estado de S.Paulo

Na entrada, o visitante encara um borrão na parede. Mais alguns passos, e chega-se à parede seguinte: uma figura vai ganhando contorno aos poucos. Na terceira, ele aparece: Machado de Assis. Assim, Machado de Assis, Mas Este Capítulo Não É Sério, no espaço para mostras temporárias do Museu da Língua Portuguesa, recepciona os visitantes, neste ano em que se comemora o centenário da morte do escritor.

A intenção, segundo Cacá Machado, um dos curadores, é mostrar o ”recalque da crítica” à obra machadiana, segundo a qual ele não é um mulato. Houve um branqueamento do autor de Dom Casmurro (1899): a miscigenação tinha de ser desfocada. ”Não quero fazer uma discussão racial, apenas mostrar que ser mulato é fundamental para o ponto de vista literário de Machado de Assis sobre a elite brasileira”, diz Cacá Machado.

Gratuita, a exposição será inaugurada para o público amanhã, às 10 horas. O outro curador é Vadim Nikitin. José Miguel Wisnik é o consultor. A Imprensa Oficial imprimiu 250 mil livretos, que apresentam um roteiro de 48 páginas e que serão dados para cada visitante. A mostra baseia-se na estrutura narrativa de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Cada espaço tem a sua autonomia, embora haja um diálogo entre eles, tal como os capítulos daquele romance machadiano. O visitante, se quiser entrar no espírito cético e irônico da mostra, precisa andar com um desconfiômetro. Na entrada, ele tem de trocar a expressão ”assim é se lhe parece” por ”nada é o que parece ser”. ”Machado morou sempre de aluguel, nunca teve dinheiro, mas já virou moeda”, diz Cacá. O rosto do escritor foi estampado na cédula do cruzado, nos anos 1980.

A exposição aborda o lirismo machadiano, presente sobretudo no olhar das mulheres, sendo os olhos de ressaca da Capitu o mais famoso. No fim, fica a impressão de que, apesar da modernização, o País mantém uma estrutura social em que a desigualdade não só é possível, mas estimulada, tema caro à literatura do escritor carioca. ”A elite nacional sempre teve a capacidade de fazer o que deseja”, diz Cacá.

Passo a Passo A exposição é dividida em um prólogo e dez capítulos: CAPÍTULO C, UM HOMEM CÉLEBRE: Em sala típica do século 19, aparece um piano que toca choros, polcas e valsas. O conto Um Homem Célebre, de Várias Histórias (1895), é a inspiração. A tela a óleo é do padre José Maurício Nunes Garcia, um dos primeiros músicos eruditos do Brasil.

PRÓLOGO, AO CARO LEITOR: Inspira-se no capítulo Ao Leitor, de Memórias Póstumas… (1881). O narrador adverte: “se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.” A ironia machadiana vale para a exposição.

CAPÍTULO MDCCCLXXXIX, MEDALHÕES: Baseia-se no conto Teoria do Medalhão (Papéis Avulsos, 1880) e em Memórias… É uma crítica ao bacharelismo brasileiro: alguém, por ter diploma ou pistolão, ganha altos cargos, apesar do discurso vazio.

CAPÍTULO I, O FOLHETINISTA: No espaço dedicado à paixão do Bruxo de Cosme Velho pelo Rio, projetores exibem imagens atuais e antigas da cidade.

CAPÍTULO XIV, OLHOS DE RESSACA: Descrição do olhar de Capitu por Bentinho, em Dom Casmurro (1899), inspira seção em que retratos de escravas encaram imagens de sinhás. Homenagem às mulheres machadianas, entre a melancolia e a sedução.

CAPÍTULO MMVIII, MEU CARO CRÍTICO: Reprodução de trechos de textos escritos por 20 estudiosos, entre eles Antonio Candido e Raymundo Faoro.

CAPÍTULO MMDCCCLXXXVIII, O VERGALHO: Trata da horrível face da escravidão (1888 em números romanos evoca o ano da Abolição). Vergalho (chicote) é o símbolo do domínio da elite branca sobre a mão-de-obra negra: é só lembrar Brás Cubas que montava o escravo Prudêncio.

CAPÍTULO XIII, SANDICE: o autor de O Alienista (1882) trata a loucura não como desvio, mas uma das faces (a outra é a razão) da mesma moeda.

CAPÍTULO CXXXVI, INUTILIDADE: Uma menção ao capítulo 1 de Dom Casmurro: narrador revela a nulidade da sua existência.

CAPÍTULO XXX, IRREAL GABINETE DE LEITURA: Em cinco telões suspensos, 11 anônimos e famosos lêem obras machadianas. Não há o silêncio do Real Gabinete Português de Leitura, no Rio, aonde ia o escritor.

CAPÍTULO MCMVIII, DELYRIO: Cronologia da vida de Machado é contada às avessas, tal como Brás Cubas fez, começando pela morte e não pelo nascimento, e não sem antes ter um delírio.

Serviço Machado de Assis: Mas Este Capítulo Não É Sério. Museu da Língua Portuguesa. Praça da Luz, s/n.º, tel. 3326-0775. 3.ª a dom., 10/ 17 h. R$ 4 (sáb. grátis). Abre hoje, 19 h, para convidados