A hidrovia já funciona

Jornal da Tarde - Domingo, 2 de maio de 2004

seg, 03/05/2004 - 9h28 | Do Portal do Governo

VALDIR SANCHES

Getúlio de Azevedo, o contramestre, dá motor, como se estivesse no Rio Paraná. Seu gesto põe o Iguaçu Explorer a navegar, no Rio Tietê. O barco despega-se da margem estropiada e suja do rio, sob o Cebolão. Nada que lembre o limpo e piscoso Paraná, onde Getúlio trabalhou por 35 anos. Em compensação, o contramestre está operando o que parece um milagre: vai navegar pela Hidrovia Metropolitana do Tietê.

Pode parecer exagero falar assim de uma hidrovia que ainda não está pronta.

Mas o fato é que ela já existe. Por ali chegam a ser transportados 100 passageiros e 28.000 toneladas de material por dia. Em alguns anos (são esses os planos) os passageiros serão pessoas que preferiram o barco ao ônibus, ou carro, para ir trabalhar. Por ora, é o pessoal que atua nas obras de rebaixamento da calha do rio.

O barco pilotado por Getúlio tem 35 assentos; leva o pessoal para seus pontos de trabalho. Integra uma frota de dezenas de embarcações, rebocadores, batelões, barcaças de escavação, pequenos barcos, lanchas, que vão e vêm por 24,5 quilômetros do Tietê: da Barragem da Penha ao Cebolão.

Como não havia navegação no rio, as embarcações tiveram que ser trazidas de longe. A barcaça Guaratuba, com seus 9 metros de largura por 22 de comprimento, 120 toneladas de peso, precisou ser cortada aos pedaços para a viagem. Como Getúlio, o contramestre, veio de Presidente Epitácio, no extremo oeste de São Paulo, onde o Rio Paraná divide com o Estado do mesmo nome. No canteiro de obras sob o Cebolão, as partes, trazidas de caminhão, voltaram a ser unidas.

Outra barcaça, a BM3, foi cortada ao meio, de comprido. Aqui, as duas partes foram soldadas e ela voltou a ser uma embarcação. Rebocadores tiveram o casco separado da cabine. Couberam em dois caminhões.

À medida em que a calha do rio foi sendo aprofundada, as embarcações ganharam mais mobilidade. A calha é como um canal, no fundo do rio. Por essa parte, mais funda, dá-se a navegação. Quando tudo estiver pronto, a calha terá 2,5 metros de profundidade (e 41 a 46 metros de largura), mesmo nos meses secos. Hoje, ela já está com pelo menos 1,8 metro.

Isso facilitou as coisas. O material retirado do leito do rio não é mais colocado diretamente nos caminhões que o levarão embora (para a Lagoa de Carapicuíba ou o Bota-Fora de Jomara, em Guarulhos). Agora, é lançado em batelões. Estes transportam o material até portos situados em pontos determinados do rio. Aqui, os batelões abrem seu fundo e a carga de terra e pedra cai junto à margem. Ela é retirada por escavadeiras e amontoada no alto das margens, para secar (como vê quem passa de carro pelas Marginais).

Depois sim, vai para os caminhões.

Pela hidrovia navegam equipes, técnicos para socorrer emergências, máquinas, peças, até mesmo o jantar das equipes. O que vai pela água, deixa de ir sobre pneus, pelas Avenidas Marginais. Tudo muito bem, mas sempre se está no rio mais poluído do País. A água tem aquela cor conhecida, de esgoto. As margens (fora os trechos em que já estão sendo urbanizadas) são maltratadas e exibem pneus, plásticos, detritos encalhados. E o cheiro…

O mau cheiro diminuiu. As chuvas recentes, o maior volume de água correndo, a retirada do lixo que veio junto com o material extraído do leito, isto tudo trouxe um alívio para o olfato. Mesmo assim, não é fácil, para estranhos, estar no rio. Os trabalhadores da obra, com os quais o JT conversou, dizem não ter mais problema: quem trabalha no Tietê acostuma com o cheiro.

Getúlio, o contramestre, transportou muita madeira, muita areia, pelo Rio Paraná. Lá, navegava sem problemas; se quisesse, podia pescar. Aqui, seu maior problema é o que está no rio e não é peixe. Pneus, pedaços de madeira, embalagens de refrigerantes, sacos plásticos, um lixo que pode travar a hélice do barco. Agora, pelo menos, a situação melhorou. Até certo tempo atrás, desciam pelo rio, ou estavam encalhados nele, sofás, geladeiras, carcaças de carros, armas de fogo, corpos de animais e de humanos.

Corpos humanos? ‘Sim’, diz, em sua sala, Andrelino Novazzi Neto, diretor de obras da Básico Engenharia, uma das empresas que atuam no rio. ‘Apareciam corpos com freqüência.’ (Os bombeiros só registram a a retirada de sete corpos no ano passado.) Armas de fogo? ‘Achamos 22 só sob a Ponte dos Remédios.’

O Iguaçu Explorer vai subindo o Tietê destes tempos mais limpos. Que sensação oferece para passageiros de primeira viagem? A primeira delas é de extremo desconforto, por se estar no meio de uma massa de água escura, malcheirosa, às vezes sobrevoada por garças que (pode ser impressão) também parecem encardidas. Mas não deixa de ser interessante o fato de se navegar num belo rio, isto no sentido de que é largo (100 metros), suficientemente volumoso. Cruza-se com barcos, batelões, e eles deixam ondas…

O trânsito das marginais, os prédios, não chamam muito a atenção. Estão lá no alto, nas margens; lá fora. O rio, apesar de tudo, é o que atrai. Em um mesmo trecho, da ponte ferroviária (Ponte da Fepasa) até a do Piqueri, há seis embarcações. Uma sonda o leito do rio. Outra é uma barcaça (ou plataforma) de escavação, operando. A terceira, um batelão à espera de entrar em serviço. Três são barcaças de fogo.

Numa destas trabalha Renato Ferreira, operador de perfuratriz. Seu trabalho consiste em perfurar a rocha no fundo do rio, que vai ser explodida. Nas primeiras fases dos trabalhos do Tietê, retirou-se o material assoreado, terra, areia, cascalho. Agora, está sendo retirado o que havia por baixo disso: rocha.

Renato vai fazendo carreiras de furos, com a perfuratriz, que é uma grande broca. Nos furos será colocado o explosivo. Antes das explosões, todos os prédios, casas, situados numa faixa a 200 metros das margens são vistoriados, para saber-se se poderão sofrer algum abalo. No começo da madrugada, o trânsito das marginais, no trecho, é interditado. E a rocha explodida.

O grande sonho de Renato é pescar no Tietê. Nasceu em Guaíra, no Paraná, às margens do rio que leva o mesmo nome. Não pensa em voltar. Quer continuar trabalhando no rio.

Em cima da barcaça Guaratuba, parada em outro trecho do rio, fica uma máquina escavadeira. Ela abre sua bocarra e a mergulha na água, como se fosse um monstro dando um bote. Em momentos volta à tona, de boca cheia.

Traz pedaços da rocha detonada. Descarrega-os num batelão. Quando estiver cheio, ele levará os pedaços de rocha rio abaixo, até um porto.

Valdeci Ferreira opera a Guaratuba. A barcaça tem que ir mudando de lugar, à medida em que a escavadeira vai limpando o fundo do rio. Para agüentar os movimentos da escavadeira, e ficar imóvel, a barcaça tem três pernas metálicas. Elas são baixadas e fincadas no leito do rio. Quando a Guaratuba tem que se mover, as pernas são recolhidas. E novamente baixadas, quando ela pára na nova posição.

O operador Valdeci transportava quartos de boi para caminhões frigoríficos, em Presidente Epitácio, de onde também, como se viu, veio a Guaratuba. Aqui, fez um curso e veio trabalhar no Tietê. Mora no alojamento da empresa. Tem um piercing no sobrolho e está feliz. ‘E nem sinto mais o cheiro do rio.’

Por estes dias, a navegação de quem sobe o Tietê, a partir do Cebolão, pára na foz do Tamanduateí. Aqui há uma corredeira, com rochas afloradas. Só com o rio mais cheio, pode-se passar. O trabalho das perfuratrizes e dos explosivos vai resolver a situação.