A guerra fiscal e o contribuinte paulista

Valor Econômico - São Paulo - Quarta-feira, 5 de janeiro de 2005

qua, 05/01/2005 - 9h14 | Do Portal do Governo

‘Ao permitir que o contribuinte evite certas operações, o Comunicado CAT nº 36 está prestando-lhe um serviço’

Por Henrique Shiguemi Nakagaki

Não é correta a interpretação que tem sido feita de que o Comunicado CAT nº 36, de 2004, da Coordenadoria de Administração Tributária do Estado de São Paulo, é uma medida prejudicial ao país por se antecipar à propositura de ações diretas de inconstitucionalidade (Adin) e por levantar preocupações nos contribuintes do imposto, que podem deixar de realizar determinadas operações com receio de autuações futuras. As Adins e o Comunicado CAT nº 36/04 não são medidas excludentes entre si, mas providências complementares.

No que se refere à ação direta de inconstitucionalidade, seu objeto próprio é o de retirar uma lei inconstitucional do ordenamento jurídico. A declaração de inconstitucionalidade de uma norma que instituiu benefícios fiscais sem amparo em convênio, dentre seus muitos efeitos, tem, tacitamente, a finalidade de tornar ineficaz o crédito de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) gerado durante o período em que a norma jurídica inconstitucional vinha sendo aplicada. Desta forma, havendo declaração de inconstitucionalidade, há necessariamente a glosa dos créditos fiscais gerados de maneira irregular.

Como a Adin normalmente demora alguns anos para ser decidida e a declaração de inconstitucionalidade opera retirando a norma do ordenamento com efeito retroativo, os contribuintes que vinham recebendo créditos provenientes do benefício irregular terão que corrigir o passado de sua escrita fiscal, devendo recolher de uma só vez todo o valor correspondente aos créditos de que se aproveitaram no período em que a norma inconstitucional vinha sendo aplicada.

O Comunicado CAT nº 36/04, cuja pretensão não é a de retirar normas do ordenamento jurídico ou declará-las inconstitucionais, somente alerta para o fato de que é prudente não se creditar do imposto gerado no contexto de um benefício fiscal de ICMS não amparado por convênio interestadual. O comunicado preocupa-se em evitar autuações futuras, permitindo ao contribuinte que avalie seus fornecedores quanto à possível obtenção de benefícios fiscais irregulares de ICMS. Desta forma, o contribuinte poderá negociar melhor seus preços na aquisição de mercadoria, avaliando corretamente o risco jurídico envolvido em determinadas operações e evitando autuações futuras.

Caso o Estado de São Paulo se limitasse somente a propor ações diretas de inconstitucionalidade, seus contribuintes do ICMS seriam surpreendidos no futuro por riscos que não conheciam ou sobre os quais não havia um posicionamento oficial do Estado. Por essa razão, ao permitir que o contribuinte evite determinadas operações, o Comunicado CAT nº 36/04 está, na realidade, prestando-lhe um serviço: o de não ser iludido por condições negociais aparentemente vantajosas, mas que escondem um risco jurídico enorme.

Além disso, quando se considera o fator concorrencial, percebe-se que o tempo de tramitação de uma Adin é suficiente para que um fornecedor que goza de um benefício irregular distorça os mercados e retire completamente a competitividade das empresas tributadas regularmente. Se o tempo de dois anos (ou mais) para que ocorra a decisão de uma liminar em Adin é razoável, tendo-se em vista o volume de processos tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF), não o é, entretanto, do ponto de vista dos mercados. Após dois anos, o dano ao fornecedor que não goze de benefícios fiscais irregulares será permanente, pois ele se verá alijado de sua carteira de clientes e de seu capital.

É comum, no contexto da guerra fiscal, que uma mesma empresa monte estabelecimentos em São Paulo e em um Estado que concede o benefício fiscal irregular, transferindo mercadorias incentivadas irregularmente para São Paulo. A vantagem concorrencial, nesse caso, é enorme, visto que a mesma empresa fabrica e utiliza o crédito de ICMS, dominando mercados e massacrando a concorrência.

No que se refere à eficácia das Adins, nas últimas ações propostas pelo Estado de São Paulo, às vésperas do julgamento pelo Supremo, ou logo após a decisão, o Estado réu editou uma lei nova, criando benefícios fiscais de ICMS identicamente irregulares e convalidando tudo o que foi feito com base em uma lei inconstitucional.

Como a lei nova revoga a legislação questionada judicialmente, o objeto das ações diretas de inconstitucionalidade é declarado perdido pelo Supremo, visto que a norma questionada já não figura no ordenamento jurídico, não havendo razão para que se prossiga com o julgamento. Tal expediente retirou praticamente toda a eficácia das Adins.

Ainda quanto à impossibilidade de se ter na Adin o único instrumento de combate a benefícios de ICMS concedidos sem respaldo legal, nota-se que grande parte dos benefícios fiscais irregulares não são concedidos mediante a edição de leis ou decretos, mas por regimes especiais que escondem verdadeiros contratos entre um Estado e um particular para criar condições privilegiadas de tributação de ICMS. Contra tais benefícios, tão ou mais danosos, não cabe a propositura de Adins.

O Comunicado CAT nº 36/04 não é a primeira medida do gênero. Os Estados do Paraná e de Minas Gerais editaram atos anteriores no mesmo sentido. O Rio de Janeiro tem várias resoluções esparsas, versando sobre a impossibilidade de aproveitamento de crédito oriundo de benefício fiscal irregular. Vários Estados, destacando-se o Rio Grande do Sul, têm editado esclarecimentos análogos.

Ressaltamos a legalidade do Comunicado CAT nº 36/04, que não tem conteúdo normativo próprio, mas somente faz otimizar o cumprimento da Lei nº 6.374/89 – que regula o ICMS no Estado de São Paulo e que, por sua vez, se encontra respaldada na Lei Complementar nº 87/96, que regula o ICMS no âmbito nacional e na Constituição Federal de 1988. A ineficácia dos créditos oriundos de benefícios irregulares é notória, tendo o Supremo se posicionado quanto à matéria, já em 1992, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 01094869/210-SP.

Henrique Shiguemi Nakagaki é coordenador da Administração Tributária da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo