A grande ópera negra de Gershwin

O Estado de São Paulo, 26 de junho de 2008

qui, 26/06/2008 - 13h11 | Do Portal do Governo

A soprano Edna D”Oliveira persegue a personagem Bess há dez anos, esperando o momento em que teria a maturidade vocal necessária para interpretar a prostituta viciada em cocaína de Porgy and Bess, a ópera jazzística composta por George Gershwin em 1934. ”Venho me preparando faz tempo para ela, para quando chegasse a hora certa”, conta ela, olhos brilhando, num ensaio no Teatro São Pedro, onde ela estréia hoje como protagonista da primeira montagem da ópera com atores brasileiros, um elenco negro como concebido por Gershwin.

Não é somente a empolgação com que detalha o processo de produção que faz com que se conclua que Bess é mesmo uma personagem perfeita para Edna. Por uma feliz coincidência, ela sobe ao palco ao lado do marido, o baixo José Gallisa. É um grande momento na trajetória do casal, cujas carreiras líricas vêm sendo construídas lado a lado, e com êxito internacional, há 19 anos. ”Nós nos apresentamos juntos antes. Às vezes, ele me mata em cena, outras, é meu pai. É a primeira vez em que atuamos como protagonistas, como par romântico. Isso só é possível nesta ópera: Porgy é escrito para um baixo e Bess, para uma soprano. Em geral, os casais são tenor e soprano”, explica Edna.

Um projeto que nasceu na mesa de um restaurante, no ano passado, a montagem de Porgy and Bess é produzida especialmente para o charmoso Teatro São Pedro. O original de 3h40, em três atos, foi adaptado pelo diretor João Malatian e pelo diretor artístico e regente Felipe Senna para 2h15, em dois atos, com 15 minutos de intervalo e sem coro. São 19 artistas no palco – 14 cantores, um ator e quatro bailarinos. No original, são 20 cantores solistas, quatro atores, grande coro e orquestra sinfônica. ”O original é impossível para este teatro. Mantivemos, então, a trama central, mas enxugamos a crônica de costumes, fazendo a fusão de alguns personagens e histórias paralelas”, detalha Malatian.

Considerada como a ópera americana mais importante de todos os tempos, a Porgy and Bess que o público paulistano verá privilegia justamente o que a obra de Gershwin teve de mais pioneiro – o colorido jazzístico.

Num trânsito interessante entre o erudito e o popular, será executada por uma orquestra de câmara com 12 músicos – violino, viola, violoncelo, banjo, piano, baixo, bateria, trompa, trompete, sax, flauta, clarinete e clarone. ”Gershwin viveu o surgimento e estabelecimento daquilo que chamamos hoje de música popular. Aqui, era o choro e o samba que nasciam. Lá, o jazz. Pela proximidade e afinidade musical, absorveu, desenvolveu e recriou influências da música do povo em sua própria linguagem ”bem educada” – educação esta que nenhum outro músico envolvido com o jazz havia tido até então”, anota Felipe Senna que, com apenas 29 anos, também é diretor musical residente de Os Produtores, em cartaz no Rio.

O grupo formado especialmente para a montagem ensaia com afinco há um mês. As três primeiras semanas com piano, e desde sexta-feira passada com a orquestra. ”Todos eles, claro, viram e ouviram as diversas versões da ópera, mas aqui a sonoridade é outra, por causa da estrutura em que estamos trabalhando”, observa Senna.

O maestro conta que a obra megalomaníaca de Gershwin é conhecida por seus ”cortes tradicionais”. ” São diversos os relatos das conversas sobre adaptação entre Gershwin e seu diretor cênico durante a turnê americana da primeira companhia, com a finalidade de viabilizar as montagens, execução e até mesmo a compreensão de tudo”, diz. ”Ele criou canções-tema para cada um de seus 11 principais, e ainda para os vendedores que caracterizam a passagem do tempo, para as cenas de ação, as tempestades, as lutas… Permeou os subtextos das figuras centrais com mais música. E percebeu, finalmente, que tinha passado da conta.”

O clima de cortiço de Porgy and Bess é recriado num cenário vazado de Renato Theobaldo, duas toneladas de caixotes de frutas. Simples e valorizada pela luz, a cenografia se contrapõe e curiosamente se completa com os figurinos de Fábio Namatame que, apesar de estar lidando com prostitutas, traficantes e vagabundos, não deixou de lado o glamour dos anos 30 na hora de vestir os atores – Bess surge voluptuosa num vestido vermelhíssimo.

Com a canção Summertime permeando toda a narrativa, a ópera conta a história de um mendigo deficiente físico, Porgy, e sua relação conflituosa com a prostituta Bess, personagens de uma comunidade negra miserável, no sul dos Estados Unidos. ”Bess é muito volúvel, por causa do apego que tem às drogas, ao dinheiro e ao sexo. Gosta muito do Crown (David Marcondes), seu amante, mas também se vê presa ao traficante Sportin”Life ( Geilson dos Santos ). E, às vezes, em momentos de lucidez, pensa em levar uma vidinha tranqüila ao lado de Porgy”, detalha Edna.

Compositor uniu o Jazz à tradição européia

INOVAÇÃO: Para se entender o impacto que teve a criação de Porgy and Bess é preciso voltar à época de sua estréia. Se hoje a mistura de estilos, gêneros, influências é algo que se dá com freqüência, nos EUA do início dos anos 30 havia algo de visionário em um compositor que se propunha a levar para a ópera a história de amor e morte ambientada em uma comunidade de pescadores negros do sul dos Estados Unidos, dando a ela uma roupagem musical que unia a tradição européia com o jazz e o blues. Não por acaso, demorou para que a peça de Gershwin ganhasse o status de obra-prima, o que começou a ocorrer apenas em 1976, quando pela primeira vez ela fez parte da temporada de uma grande casa da ópera, em Houston, chegando nove anos mais tarde ao Metropolitan de Nova York. Escrita com base no livro Porgy, de DuBose Heyward, que também assina o libreto, a ópera conta a história de Porgy, que tenta salvar Bess, sua amada, da dominação de seu cafetão e de seu traficante de drogas. A história se passa na Carolina do Sul, onde Gershwin fez pesquisas sobre a preservação da herança de ritmos africanos; mas ele bebeu mesmo foi na cena jazzística de Nova York. Há, na verdade, um pouco de tudo: orações, blues, spirituals, canções de trabalhadores, transmutados em árias, duetos e recitativos. Vários autores também já chamaram atenção para a presença de melodias de origem judaica na partitura. Gershwin também faz uso de temas condutores, que se associam a cada personagem e situação, reaparecendo ao longo da ópera, agregando novos significados ao texto. Trechos como ”Summertime”, ”I Got Plenty o” Nuttin”, ”Bess, You Is My Woman Now” e ” I Loves You, Porgy” estão entre as mais célebres criações do compositor.

O Estado de São Paulo