A Fapesp e as duas culturas

O Estado de S. Paulo, domingo, 21 de outubro de 2007

dom, 21/10/2007 - 17h03 | Do Portal do Governo

O Estado de S. Paulo

Celso Lafer

O significado originário da palavra ciência (do latim scientia) é conhecimento. Até o século 19 a dicotomia cultura científica/cultura das humanidades não era de curso corrente nessa matéria. O grande mapa do conhecimento do século 18 – o das luzes e da razão -, a Enciclopédia, não foi estruturado em torno da divisão ciências/humanidades. Data do Romantismo e da Revolução Industrial, no século 19, a ansiedade relativa à separação entre as ciências exatas e as ciências humanas. Provém do impacto do conhecimento científico-tecnológico no funcionamento das sociedades. Deriva da preocupação que o cálculo e a mensuração, inerentes ao método científico, poderia abafar o cultivo da personalidade e da sensibilidade que as humanidades propiciam. Por isso o tema se desdobrou em discussões sobre os currículos escolares e o papel da educação, e no debate público separou os defensores das exatas e das humanidades, os românticos dos utilitários.

Na Inglaterra, o livro de C. P. Snow, de 1959, que teve larga repercussão, As duas culturas e a revolução científica, se insere na tradição deste debate.

Snow, que foi cientista e romancista, apontava que, nas sociedades contemporâneas, a vigência de uma cultura comum desaparecera e que havia uma enorme falta de comunicação entre a cultura literária e humanística e a cultura científica. Com base na sua experiência e em seu conhecimento, realçava o imenso papel da cultura científica na configuração do mundo moderno. Lembrava, igualmente, a influência da cultura literária e humanística na formulação de idéias diretivas e na articulação de valores para as sociedades. Sustentava, assim, na dupla condição de cientista e homem de letras, a importância de uma recíproca e efetiva comunicação, sem a qual não seria possível lidar com os desafios e os problemas contemporâneos.

Tive em mente o livro de C. P. Snow ao assumir, em setembro, a presidência da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), criada em 1960 por lei do governador Carvalho Pinto e que representa o compromisso público com a pesquisa prevista na Constituição estadual paulista. A razão da lembrança provém de um fato: um dos muitos méritos da Fapesp é o de se ter convertido, no correr da sua exemplar trajetória, num local de encontro das duas culturas. Com efeito, o objeto do seu trabalho, graças a uma concepção ampla de pesquisa, é o avanço, com rigor e método, do conhecimento, em todas as áreas: ciência, tecnologia, artes, literatura, filosofia e ciências humanas.Penso que o encontro das duas culturas que a Fapesp favorece é fundamental, pois da data do livro de Snow até os dias de hoje vem crescendo de maneira exponencial a relevância desse encontro. Este requer, por analogia com o multilingüismo, a aptidão de ir além da monolinguagem das especialidades para lograr a capacidade de tradução e, assim, por meio da comunicação, superar os riscos dos desencontros da Torre de Babel contemporânea. É por meio da comunicação e do diálogo entre as duas culturas que se articulam os conhecimentos que favorecem a interdisciplinaridade.

A propósito da interdisciplinaridade, começo apontando que a natureza não é mais, para falar com os gregos, physis, ou seja, um dado estável, passível de conhecimento, distinto daquilo que é criado pelo homem. Por força das inovações científico-tecnológicas, é manipulável e alterável pela ação do homem. Daí a contínua transposição de barreiras antes tidas por naturais. Por isso o pensar da cultura intelectual e o nomos que engendra e requer o conhecer da cultura científica.

Não é fácil lidar com esta dialética de complementaridade, pois ela envolve enfrentar a diversificação e a fragmentação. Daí a posição dos pensadores da condição pós-moderna que contestam a possibilidade de critérios de ordem geral para o conhecer e o agir.

São inegáveis os desafios da condição pós-moderna. É imensa a complexidade trazida pela velocidade com a qual a cultura científica e tecnológica – no âmbito, por exemplo, da matemática, da física, da biologia, da computação, da engenharia, da saúde, áreas que, além de outras, a Fapesp apóia – amplia os horizontes do conhecimento e altera as condições de vida de todos e da própria pesquisa. Assim, se é certo que no mundo contemporâneo não dá para criar, numa visão integrada, a linguagem universal de uma cultura comum, não é menos certo ser um imperativo do nosso tempo uma comunicação entre as duas culturas.

Desse imperativo da tradução entre as linguagens do conhecimento me dei conta como professor de Direito, oriundo das humanidades. A informática alterou as formas de pesquisa nas ciências humanas e a prática do Direito. O funcionamento das sociedades em rede mudou a dinâmica das relações internacionais. Os problemas da bioética requerem a comunicação entre as duas culturas. O mesmo se pode dizer do direito do meio ambiente, pois sem esta comunicação o princípio da precaução, a análise do impacto ambiental e o desafio da mudança climática se esvaziam de conteúdo. Daí, aliás, o significado da concessão do Nobel da Paz ao IPCC – ao painel de cientistas da ONU sobre mudanças climáticas.

A Agência Fapesp, com o seu boletim eletrônico e seu site, assim como a revista Pesquisa-Fapesp são uma significativa face externa do diálogo das duas culturas propiciado pela instituição. Oferecem, continuamente, textos atualizados sobre política científica e tecnológica, sobre meio ambiente, sobre ciência, sobre humanidades – as áreas de atuação da Fapesp. Contribuem, desse modo, para conscientizar a opinião pública do relevante e indispensável nexo entre as áreas do conhecimento no mundo contemporâneo. Articulam, no pluralismo das suas matérias, a sábia afirmação de Miguel Reale: “No universo da cultura o centro está em toda parte.”Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC