A defesa do direito das vítimas

Valor

ter, 25/08/2009 - 9h37 | Do Portal do Governo

Não fumantes não podem ser constrangidos por condutas de terceiros 

No último dia 7 de agosto, entrou em vigor no Estado de São Paulo a Lei 13.541/09, que proíbe o fumo em ambientes total e parcialmente fechados de uso coletivo.

Foi seguida uma tendência de cidades como Nova York e países como a França de defender a saúde pública, em especial a dos empregados de bares, restaurantes, escritórios e de todos os não fumantes. Estes não podem ser constrangidos a sofrer as consequências de serem obrigados a fumar contra a sua vontade, pela conduta de terceiros despreocupados com o resultado de seu vício para si e para os demais. 

Como já ocorreu no mundo inteiro, a indústria do tabaco desencadeou, por intermédio de seus parceiros, uma intensa campanha com objetivo de desacreditar a lei e boicotar sua efetiva aplicação. 

Na impossibilidade de contestarem os graves males causados pelo fumo para fumantes e não fumantes, os aliados dessa indústria promovem a desinformação e alegam que há direito individual sendo ferido pela restrição imposta. Na sequência, dizem que a lei é draconiana e que o setor de bares e restaurantes sofrerá queda de atividade econômica, que haverá desemprego e que a própria essência da democracia está sendo desrespeitada. 

Ora, não há direito de expor a vida e a saúde de outra pessoa a risco e os dados referentes à atividade econômica de Nova York, um ano depois da vigência da lei, demonstram que, além dos ganhos em qualidade de vida, a atividade econômica do setor de bares e restaurantes aumentou. 

O início da aplicação da Lei Antifumo em São Paulo apresentou mais de 98% de seu cumprimento espontâneo, mostrando que a ampla maioria da população apoia a solução, fato que já tinha sido apontado por pesquisas feitas até mesmo entre os fumantes. 

A repercussão tem sido tão positiva que outros Estados da Federação, como Rio de Janeiro e Paraná, aprovaram ou estão prestes a aprovar projetos análogos. Sendo difícil enfrentar os evidentes benefícios da restrição ao fumo, outros argumentos aparecem para tentar depreciar ou desmoralizar a lei. 

Assim, de maneira ofensiva e deplorável, em artigo publicado neste Valor, sob o título “Em São Paulo delação é desejável”, sua autora, a jornalista Maria Inês Nassif, faz referências ao nazismo, ao stalinismo e ao macartismo para atacar a lei, seus autores ou seus aplicadores, em raciocínio que atenta contra a inteligência de seus leitores. 

Fazendo referência pessoal a mim, ao secretário de Saúde Luiz Roberto Barradas e ao governador José Serra, chega à conclusão que “a ideia da delação é central à lei” e discorda do que chama de incentivo à “deduragem”. 

A ideia de delação vem carregada de rejeição. Na vida, não faltam exemplos de mesquinharia, vilania e torpeza de quem entregou judeus à Gestapo ou seu companheiro de lutas libertárias à tortura. Por outro lado, a delação é punida com a morte pelas organizações criminosas como nos lembra José Ricardo Ramalho na obra “O mundo do crime ou a ordem pelo avesso”, que estudou o universo das prisões. 

O artigo confunde conceitos: defender o direito de cada um à saúde e o direito de exigir providências para seu respeito por parte do Estado – ou seja, o exercício da cidadania ativa – transforma-se em delação. 

Por esse critério, o jornalista que contar à direção do jornal que um colega faz “matéria paga” pratica delação; quem informar que outra pessoa é um assassino também pratica delação; o policial que informar à corregedoria que seu companheiro usa a tortura ou recebe propina é delator; a mãe que revelar à polícia o autor do estupro praticado contra sua filha é delatora. E todos mereceriam ser estigmatizados, o que é um absurdo. 

O Estado de São Paulo tomou todas as providências necessárias para fiscalizar a nova lei de defesa da saúde pública, mas aceita, sim, a colaboração cidadã de todos que querem ver a regra respeitada. 

A aplicação será feita com equilíbrio e com base em provas, assegurada a possibilidade de recurso a autoridade superior. A informação anônima servirá de base para orientar a fiscalização, e jamais de prova cabal contra quem quer que seja – ao contrário do que se afirma no artigo. 

No regime democrático, é dever do Estado cumprir a vontade popular expressa em lei e torná-la efetiva. O Estado de Direito é baseado no cumprimento da lei, e esta pressupõe um hábito geral de obediência. A fiscalização é um dever do serviço público e direito subjetivo do cidadão, o que não tem relação com qualquer forma de autoritarismo. 

Certamente isso desagrada a todos aqueles que querem ver a proteção da saúde não se firmar, a lei não ser efetiva – enfim, a todos que admiram a cultura da tolerância com a ilegalidade. 

O governador José Serra não tem o menor apreço pelos regimes totalitários. Durante a ditadura militar, pagou pela sua coragem e independência com o exílio, que se estendeu por 14 anos. 

Talvez a autora do artigo não saiba que eu também participei ativamente da resistência ao regime militar, fato do qual muito me orgulho. E que depois disso passei a minha vida como promotor de justiça denunciando corruptos, violentos e todos os tipos de bandidos, atividade que fiz com grande dedicação. 

Todos têm o direito de discordar e criticar qualquer lei ou governante. Mas ninguém espera que os colaboradores de um grande jornal troquem argumentos por insultos e confundam alhos e bugalhos, cidadania ativa e dedurismo. 

Luiz Antonio Guimarães Marrey é secretário da Justiça e Defesa da Cidadania.