A Constituição e o direito penitenciário

Valor Econômico - Quarta-feira, 30 de abril de 2008

qua, 30/04/2008 - 15h46 | Do Portal do Governo

Valor Econômico

Aloysio Nunes Ferreira Filho*

O governador José Serra sancionou recentemente uma lei, de iniciativa do deputado Baleia Rossi (PMDB), que regula a utilização das pulseiras eletrônicas em presos como forma de fiscalizar o cumprimento de decisões judiciais, sobretudo as que tenham autorizado o detento a sair da penitenciária para trabalhar fora ou conviver com a família. O tema gerou polêmica no meio jurídico. Há quem considere a lei inconstitucional, porque caberia ao Congresso Nacional a prerrogativa de votar leis penais. Outros acusam a lei de conter falhas técnicas e conceituais, porque ela não define custos, abrangência e critérios para a escolha da tecnologia a ser adotada. Minha convicção é outra.

Viver em uma federação é como habitar um prédio de apartamentos: envolve um delicado equilíbrio. Para que haja harmonia, convém que um estatuto defina os espaços comuns e os que são de uso privativo. Por isto, a Constituição Federal indica as matérias em que somente admite leis federais ou nacionais, conforme o artigo 22, e aquelas em que prefere a coexistência de leis da União e dos Estados, segundo o artigo 24. O direito penal pertence ao primeiro conjunto – inciso I do artigo 22. Já o direito penitenciário, ao segundo – inciso I do artigo 24. Portanto, o texto constitucional pressupõe que um ramo não se confunde com o outro, embora não diga qual é a linha divisória entre ambos. Traçá-la cabe aos intérpretes da Constituição, isto é, a toda a sociedade, em permanente diálogo com os juízes, especialmente os do Supremo Tribunal Federal (STF).

Interpretar a Constituição não é tarefa simples, nem mesmo para os que se especializaram nisto. Basta lembrar as freqüentes diferenças de opinião entre ministros do Supremo. Mas em um ponto há consenso entre todos: quando a Constituição usa um conceito jurídico (por exemplo, coisa julgada, crime doloso contra a vida ou flagrante delito), é prudente ouvir o que a doutrina jurídica tem a dizer sobre o assunto. Afinal, toda ciência tem sua linguagem técnica e o direito não é uma exceção. Um jurista já perguntou, com razão: “A que ficaria reduzida, em geometria, a lei angular de Tales, se fosse lícito chamar ‘triângulo’, indistintamente, a um polígono de três, de quatro, de cinco ou de vinte lados?”

O traço distintivo entre o direito penal e o penitenciário foi delineado na Europa há quase 80 anos. De lá para cá muita água passou por debaixo da ponte, mas essa distinção científica resistiu e nós a importamos, como boa parte dos nossos institutos jurídicos. É natural que, em nosso ambiente, o direito penitenciário tenha um desenvolvimento próprio. Mas como não é coisa que tenha nascido aqui e só cresça no Brasil, o magistério de nossos escritores pode ser associado às lições que vêm de juristas europeus e, particularmente, dos que têm uma tradição jurídica comum à nossa. E quem consultar os especialistas verá que há um denominador comum entre eles: com o trânsito em julgado da sentença condenatória, surgem direitos e deveres recíprocos entre o Estado e o condenado, inconfundíveis com os que existem no extenso itinerário que vai do crime à condenação do seu autor.

A competência federal é a de traçar diretrizes ou normas gerais, que pressupõem lei estadual para cuidar das minúcias

Esta relação, que nasce com o trânsito em julgado da sentença condenatória, é o estatuto jurídico do condenado, e sua regulação é feita pelo direito penitenciário – e não pelo direito penal. O direito penal é o conjunto das normas jurídicas que regulam o principal poder punitivo do Estado e que associam ao crime, como pressuposto, a pena como conseqüência. Mas ele não rege a investigação do crime e a aplicação da pena, temas de que trata o direito processual penal. E também não governa a execução penal.

O direito penitenciário tem autonomia científica em relação ao direito penal e ao direito processual penal e é ele que abrange o conjunto das normas jurídicas relativas à execução das penas e das medidas de segurança. Em suma: toda a execução penal, na qual se incluem o livramento condicional e as autorizações de saída, cujos resultados só são proveitosos quando estes benefícios são acompanhados de adequada fiscalização. Isto não é reconhecido apenas pelos teóricos, mas também na exposição de motivos da Lei de Execução Penal. Ali se diz que todas as unidades federativas “devem prestar a necessária contribuição para que a frente de luta aberta contra a violência e a criminalidade possa alcançar bons resultados no campo prático, atenuando o sentimento de insegurança oriundo dos índices preocupantes da reincidência”. E é isto que a lei estadual pretende, ao estabelecer normas para o uso de pulseiras eletrônicas, na esperança de trazer para nós os bons resultados que experiências semelhantes produziram. Aliás, em quase todos os continentes as pulseiras eletrônicas já são utilizadas com sucesso, como uma alternativa eficaz à prisão, que protege a sociedade e não fere a dignidade do condenado.

Talvez a Lei de Execução Penal tenha nascido com a pretensão de ser uma codificação exaustiva. Mas a competência federal é simplesmente para traçar diretrizes ou normas gerais, que pressupõem lei estadual para cuidar das minúcias. Além disso, a Constituição permite que o Estado exerça uma espécie de suplência, para preencher lacunas da legislação federal. E esta omissão existe a propósito das pulseiras eletrônicas, o que é compreensível, pois em 1984, quando a lei federal foi aprovada, esta tecnologia ainda não se difundira.

Em suma: a lei paulista não ocupou indevidamente um território federal. E não falhou por não definir a tecnologia, os prazos e os custos. Uma lei não é inconstitucional apenas porque não prevê a despesa contínua que dela resultará. Custo é questão de orçamento, que se decide todo ano. Enquanto não houver dotação orçamentária, a lei não será aplicada, sem que seja inválida – conforme a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 3.599 julgada no Supremo. E também é correto que o Poder Executivo programe a implementação gradativa da vigilância eletrônica e escolha os meios tecnológicos. Na verdade, a lei seria inconstitucional se decidisse no lugar do administrador, pois ofenderia os princípios da separação dos poderes e da eficiência. Determinar o produto a ser adquirido pela administração é matéria de discricionariedade e compete ao Poder Executivo fazer a melhor opção, de acordo com fatores técnicos e econômicos, conforme a Medida Cautelar em Adin nº 3.059 julgada no Supremo.

*Aloysio Nunes Ferreira Filho é advogado e secretário-chefe da Casa Civil do Governo de São Paulo