Serra outorga Ordem do Ipiranga a Paulo Brossard

Governador José Serra: Nossa satisfação, e a minha pessoalmente, é muito grande no dia de hoje. Vamos entregar a nossa maior honraria, a Ordem do Ipiranga no grau de Grã-Cruz […]

ter, 19/05/2009 - 23h00 | Do Portal do Governo

Governador José Serra: Nossa satisfação, e a minha pessoalmente, é muito grande no dia de hoje. Vamos entregar a nossa maior honraria, a Ordem do Ipiranga no grau de Grã-Cruz a um homem público cuja vida honra seu estado natal, honra São Paulo e honra todo o Brasil.

As palavras não são capazes de resumir uma pessoa. Mas elas contribuem, sem dúvida, para avivar a memória dos exemplos de sua vida, da sua coragem, da sua coerência, da sua ética.

O ministro Brossard é natural de Bagé, município na fronteira com o Uruguai. Que também foi pátria de Silveira Martins, chefe maragato da Revolução Federalista, e onde, depois, foi fundado o Partido Libertador. Paulo Brossard de Souza Pinto nasceu em outubro de 1924.

Nasceu, portanto, entre dois “fogos”, isto é: menos de um ano depois de finda a Revolução de 1923, no Rio Grande do Sul, e mal concluída a Revolução de 1924, em São Paulo.

Entre as suas memórias mais antigas, está a notícia do início da Revolução Constitucionalista de 32, dada por seu pai à sua mãe.

Todo esse contexto parece ter predestinado Brossard a se envolver com as questões nacionais, trazendo à política o destemor, a ousadia, o patriotismo, atributos frequentes, na verdade, nos homens forjados na fronteira do país.

Muito cedo militou no Partido Libertador, pelo qual foi deputado à Assembléia gaúcha por 12 anos, mas a cujos princípios permaneceu fiel por toda vida – particularmente na defesa do parlamentarismo, uma causa tão próxima do meu partido e tão próxima de mim.

Em 1966, extinto, como todos os outros, o seu PL – e às vésperas do prazo final para filiação em uma das duas agremiações políticas criadas – a Arena e o MDB – escreveu ele uma corajosa carta ao senador Mem de Sá, seu ex-correligionário de legenda, que, então, era ministro da Justiça do governo Castelo Branco.

Ali, entre outros pontos escreveu: “Compromissos políticos eu os tenho. São os que assumi com o povo por intermédio do PL. Extinto este, por um ato de império, aqueles não foram revogados. Não o foram. Antes foram reafirmados”.

Considerando o Movimento de 64, ressaltou: “Não chegou a haver uma revolução e deixou de haver a legalidade”.

Numa referência à extinção do partido em que ambos militaram, expressou-se de uma maneira bem característica, acentuando estar despojado dos instrumentos da ação partidária, a pé, com freio e pelego na mão porque lhe levaram o matungo – que, para quem não sabe, como eu, quer dizer cavalo.

Por fim, filiou-se ao MDB e elegeu-se deputado federal. Então – com grande modéstia, mas com igual senso ético e senso político – despediu-se da Assembléia Legislativa de seu estado afirmando: “não existem mandatos maiores ou menores, mais altos ou menos altos; existem apenas mandatos populares bem ou mal exercidos”.

Assumindo o novo mandato, foi indicado pelo então líder da oposição, Mario Covas, para uma das comissões da Câmara. Em carta, recusou a indicação, esclarecendo sentir-se muito independente para representar o MDB.

E lembrou: “dirá vossa excelência, como me tem dito, que procedendo assim não poderei ser mais do que ‘meio deputado'”. De forma surpreendente, o então deputado Brossard acrescentou: “O registro é exato. A responsabilidade, porém, não é minha – como não é sua: o fato decorre de grosseira concepção que, deformando a realidade nacional, dividiu ou pretende dividir a Nação em dois compartimentos, nos quais ela devesse caber, como se neles coubesse. Nesse quadro arbitrário, onde poucos se sentem à vontade, continuo como um extranumerário e um sobrevivente(…)”.

Pois bem, com o brilho de sua inteligência, com a força de suas palavras, com o vigor da sua ética, este “meio deputado”, que já era um “deputado integral”, tornou-se senador pelo MDB, vice-presidente do partido, seu líder no Senado e candidato a vice-presidente, na chapa de oposição encabeçada pelo general Euler Bentes.

Foi defensor intransigente dos direitos humanos. Em seu primeiro discurso, na Câmara Federal, denunciou a tortura e a morte de um sargento cujo corpo, com as mãos atadas, foi encontrado boiando no rio Guaíba.

Já em seus primeiros momentos no Senado, defrontou-se com um dos seus pares, que desafiara que se provasse que os direitos e garantias individuais previstos na Constituição de 1946 eram melhores do que os da Constituição de 1967.

Brossard reagiu, como não podia deixar de ser, ironicamente. Aliás, muitos daqui também já deram sorrisos irônicos, quando ouviram essa afirmação.

Concordou com o outro senador, que, quanto a essa matéria, a Constituição de 1967 algumas vezes era superior à de 46. Porém, observou que a questão não reside na existência de textos ou na sua excelência, mas em saber se os textos são respeitados – o que notoriamente não acontecia, inclusive com o telefone do próprio Brossard, que era censurado, infringindo-se, assim, o direito ao sigilo das comunicações.

Daí ele concluiu que, se havia vantagens na Carta de 1967, eram apenas “vantagens tipográficas” e não vantagens efetivas.

Bem, mencionar os discursos brilhantes de Paulo Brossard é uma tarefa hercúlea. Mas eu gostaria de me referir ao pronunciamento que fez repudiando o Pacote de 1.º de abril de 1977.

Eu ainda estava no exílio, nesse momento, quando corriam insistentes boatos sobre a sua iminente cassação, que terminou não acontecendo.

Mesmo nessas circunstâncias ele não se apequenou, não se encolheu, manifestou-se com a grandeza que o consagrou como um dos maiores parlamentares da nossa história.

Após a condenação do pacote, aos danos que ele estava provocando à política, às liberdades civis, ao direito, Paulo Brossard profetizou:

“Chegará o dia em que tudo isso terá que ser refeito. Uma assembléia sem peias, eleita livremente, há de recompor este País, pois outro caminho inexiste para reordenar a Nação traumatizada (…). Sejam quais forem os infortúnios que ao País estejam reservados, guardaremos, haveremos de guardar, para que não se percam, as sementes do bem, da justiça, da paz, da ordem legal, da liberdade, a fim de que o Brasil continue”.

“A tarefa”, dizia ele, “será grande, e humildes os operários; mas nas menores coisas e nos acontecimentos mais singelos há sempre um fragmento de eternidade”.

De fato, a redemocratização foi uma tarefa enorme, levada à frente pelo Parlamento e pelo povo brasileiro com a luta pela anistia e pelos direitos humanos e a rejeição ao exílio de tantos brasileiros; com o combate à repressão, à tortura, ao AI-5, à Lei Falcão; com a luta pela Constituinte, pela reconquista da liberdade de expressão e pelo exercício pleno dos direitos civis e sociais e com a restauração do voto direto, nas três esferas do executivo.

Em todas essas causas, lá estava Brossard, com suas marcas registradas: a ousadia e o chapéu.

A ousadia, jamais alguém a arrebatou. O chapéu, sim!

Essa peça era tão popular que, quando Brossard esteve em São Paulo na condição de patrono da Turma do Sesquicentenário da Criação dos Cursos Jurídicos no Brasil, os alunos da São Francisco lhe comunicaram que iriam roubar seu chapéu para fazer uma rifa e angariar fundos.

O Marrey ainda não era aluno ou já era, Marrey? Você foi um ideólogo disso?

Mediante um acordo prévio, o chapéu foi consensualmente “roubado”. Porque Brossard concordou com a história. Aí é o jeito dos advogados do XI de Agosto, também, – negociar, no caso, essa desapropriação. Brossard concordou com a história, desde que ele pudesse usá-lo até voltar a Brasília. De lá, ele o mandaria de volta a São Paulo para seguir a destinação acordada – o que foi efetivamente feito.

Eu quero dizer que, ao longo desses anos todos, eu estava fora do Brasil, e conhecia o Paulo Brossard pelos recortes de imprensa que nós avidamente aguardávamos a cada semana. Por isso mesmo eu posso fazer uma valorização muito especial ao papel que ele, como tantos outros combatentes do MDB, tiveram no sentido da redemocratização do País e para permitir a nossa volta. Nós os sentíamos trabalhando para isso.

Portanto, eu tenho uma relação afetiva, independentemente até do conhecimento pessoal, com todos aqueles parlamentares que deram aquelas batalhas ao longo do governo Médici, que foi o mais terrível, e dos outros governos militares que o sucederam.

O apreço que a sociedade paulista tinha e tem por Paulo Brossard se evidenciou também por outras formas, como a aclamação que recebeu dos frequentadores de uma das mais tradicionais cantinas paulista, a do Giordano Bruno, onde certa vez entrou para jantar.

Como no mesmo local havia uma pessoa pouco democrática (eu gostaria muito de ter visto isso) e menos amada do que ele, Brossard modestamente comentou: Os aplausos não são para mim; são contra ele. Eu queria pedir ao Marrey que depois me desse o nome dessa pessoa.

Encerrada sua atuação no Senado, nem por isso esse advogado, jurista, professor, agricultor, jornalista deixou de servir à pátria, pois foi ainda membro da Comissão Afonso Arinos, incumbida de elaborar o anteprojeto constitucional, a ser oferecido como subsídio à Assembleia Nacional Constituinte.

Infelizmente, ministro Brossard, não aproveitada, equivocadamente, pela Constituinte, que partiu do zero. Uma constituição que partiu de contribuições isoladas, sem uma coerência de natureza conceitual ou mesmo prática. Isso gerou, na verdade, uma Constituição com muitos problemas. Eu me lembro bem do texto da Comissão Afonso Arinos. Teria sido um extraordinário ponto de partida, mas que infelizmente se perdeu.

Mais ainda, Brossard depois foi consultor geral da República; ministro da Justiça; ministro do Supremo Tribunal Federal, onde se destacou por seu conhecimento jurídico, sua independência, seu equilíbrio e seu senso de justiça, amplamente reconhecido pelos seus pares num período de transição, em que a maior parte a maior dos ministros vinham do regime autoritário e, portanto, especialmente delicado como área de convivência de juristas de diferentes origens e até, possivelmente, de ligações com o mundo político. Conduziu-se magistralmente bem. Deixa-nos saudades. Em certos momentos essa saudade se intensifica.

Por tudo isso, tenho muita admiração por ele, e também, por que não dizer? Por ele ter descoberto o Marrey antes de mim. Foi uma sorte para o Marrey, mas para nós é sempre um motivo, não de lamentação, mas de um pouco de ciúmes, ele nomear o nosso secretário da Justiça como seu chefe de gabinete, no Ministério.

Na verdade, Paulo Brossard é uma verdadeira lição de vida. É também o testemunho de que o empenho, a clareza de objetivos, a ética podem triunfar na construção de uma sociedade cada vez mais justa e cada vez mais democrática.

Parabéns a Paulo Brossard. Muito obrigado, ministro, por acolher essa homenagem que lhe prestam os brasileiros de São Paulo, o governador de São Paulo, e a minha pessoa, muito especialmente.

Muito obrigado.