Especial: Shayenne conquistou o direito de usar o sobrenome paterno

O caso da adolescente atendida no Poupatempo ilustra o drama de cerca de um milhão de pessoas no Estado sem paternidade definida

seg, 07/08/2017 - 10h04 | Do Portal do Governo

“Encontre aqui o seu pai” é o nome do serviço oferecido por unidades do Poupatempo de identificação de paternidade que está beneficiando centenas de pessoas. São crianças, jovens e adultos que convivem ao longo dos anos com a situação constrangedora de não ter o sobrenome do pai nos registros de nascimento e documentos de identidade.

Assim vivia Shayenne, de 17 anos, até o início deste ano. Sua mãe, Nilza Mota da Silva Rocha, funcionária pública em uma escola pública municipal, foi abandonada pelo ex-companheiro depois de cerca de um ano e meio de relacionamento, quando estava grávida de cinco meses.

O pai de Shayenne enfrentava problemas com o álcool e as drogas e, um dia, depois de surtar, sumiu de casa. Ficou desaparecido por um tempo até reaparecer na casa da familiares, em Juiz de Fora, Minas Gerais.

Nilza retomou o contato com o ex-companheiro só quando Shayenne completou 15 anos. No ano do aniversário da adolescente, o pai ligou para a filha e falou com ela pela primeira vez desde o seu nascimento. Uma parente havia conseguido localizar o perfil de Shayenne no Facebook. Foi assim que conseguiram o endereço de Almeida, depois de tanto tempo.

Almeida, ao falar com a filha, disse que nunca a havia esquecido e que queria reconhecer a paternidade. A oportunidade surgiu quando Nilza encontrou um panfleto na unidade do Poupatempo de São Bernardo, precursora do serviço que depois seria estendido a outras unidades do programa.

Nilza costuma frequentar a unidade com frequência para acompanhar as notícias do município pelo diário oficial. Em novembro do ano passado, ela soube do serviço que havia sido inaugurado havia poucos dias. Lá preencheu uma ficha com o nome completo do pai de sua filha, endereço e indicações de onde encontrá-lo, que foi encaminhada ao Ministério Público. O MP se encarregou da continuidade do processo.

Em janeiro do ano seguinte, Shayenne foi tirar a segunda via da certidão de nascimento no Fórum e o nome do pai já constava do documento. “Fui ao Fórum e, quando cheguei em casa, é que notei o sobrenome Almeida na certidão. Mostrei para minha mãe e ficamos as duas muito emocionadas”, disse.

Na nova carteira de identidade (RG), tirada também no Poupatempo, o  nome completo da adolescente também constava por completo: Shayenne Roberta Mota da Silva passava a ser chamada de Shayenne Roberta Mota da Silva de Almeida.

Quando Shayenne retomou o contato com o pai, passou a conhecer detalhes que desconhecia. Descobriu que seu pai havia se casado, tivera dois filhos, um deles mais velho que ela e outro que já havia morrido. Ela ainda não conhece o pai pessoalmente. A falta de condições financeiras e a distância física que os separam ainda não permitem que esse desejo mútuo se consuma.

O pai da ideia
Em São Bernardo do Campo, aproximadamente 10 mil crianças em idade escolar desconhecem que são seus pais. O número é resultado do levantamento feito pelo promotor de justiça Maximiliano Roberto Ernesto, que há muito vem lutando para que as pessoas tenham esse direito reconhecido.

Algumas iniciativas foram adotadas pelo promotor em São Bernardo. Impressionado pelos casos de crianças de escolas públicas que não têm o nome do pai, o promotor chegou a intimar, em uma primeira tentativa, as mães para que fossem ao Fórum para a adoção das providências.

Por motivos particulares, muitas delas se recusaram a participar e assim o promotor entendeu que a convocação compulsória não era o melhor caminho. Por outro lado, as campanhas no interior do Fórum tinham repercussão restrita.

Em 2005, ele decidiu solicitar à Prodesp, a empresa de tecnologia que gerencia os postos do Poupatempo, para incorporar a ideia.  A unidade de São Bernardo, onde circulam mais de 7 mil pessoas por dia, foi a primeira a oferecer o serviço, em 7 de novembro de 2016.

Desde então, já foram atendidos no município 362 pedidos de identificação de paternidade iguais ao de Shayenne. Desse total, 152 fichas foram preenchidas ainda nos primeiros meses até o final de 2016, média de quatro por dia.

O número de pessoas atendidas diminuiu em São Bernado porque outras unidades também passaram a oferecer o serviço. Além da unidade região metropolitana, outras seis unidades do Poupatempo da cidade de São Paulo, entre elas a de Itaquera, a maior de todas, também passaram a atender. Até a semana passada, 2.079 pessoas haviam recorrido ao serviço – média de 347 fichas preenchidas por mês.

O promotor acha o número pequeno diante da quantidade de pessoas que não têm paternidade definida, estimada em aproximadamente 1 milhão de pessoas em todo o Estado. Para ampliar o número de pessoas atendidas, ele encaminhou às secretarias de Estado da Educação, Justiça e Defesa da Cidadania e Administração Penitenciária uma proposta para ampliar o serviço para as escolas públicas do Estado, unidades dos Centros de Integração de Cidadania (CIC) e penitenciárias.

Nas escolas, 4% das crianças não têm paternidade definida e no sistema prisional, 14% da população carcerária. O caso é “semelhante a uma epidemia e, embora não seja uma doença, os problemas psicológicos que ocasionam afetam o estado físico das pessoas”, afirma Maximiliano.

História incompleta
A maioria das pessoas que pleiteiam a medida é de origem pobre, e não pode arcar com despesas de deslocamento para outras cidade e estados ou para pagar as custas dos processos. O promotor entende que elas têm o direito de pleitear junto com o reconhecimento de paternidade ações de pensão alimentícia e reivindicações de herança, mas considera que as principais razões são de caráter emocional.

É o reconhecimento da presença do pai no sentido afetivo, afirma o promotor, que é o mais importante, e o simples fato do nome do pai constar do registro. “É uma carga que a pessoa carrega pelo resto da vida, cada vez que precisa preencher uma ficha, procurar um emprego, vai enfrentar esse problema, sempre fica com essa ideia na cabeça”, afirma.

Ele cita o filósofo britânico Alasdair Chalmers MacIntyre – “o ser humano é um ser que conta histórias” – para reforçar seu ponto de vista. “Sem a presença do pai a pessoa fica sem condições de poder contar a sua própria história”. Foi o que aconteceu com Shayenne: ao retomar o contato com o pai, ela também fez as pazes com a sua própria história.

Tal quantidade de pessoas sem paternidade reconhecida tem, segundo o promotor, paralelo naquilo que foi a maior desgraça que aconteceu ao país, a escravidão. Em termos da grandeza dos números, o regime escravagista, em seus 200 anos de vigência, foi responsável pela morte de 250 mil pessoas.

Tudo o que eu quero é ser amada
Maximiliano ilustra a questão do ponto de vista emocional com uma situação que presenciou no fórum. Ele entrou em uma audiência e notou que a juíza estava em sua poltrona sentada de costas para os advogados, promotores e pessoas que estavam na sala. Todos eles tinham lágrimas nos olhos. O promotor notou que num dos lados da mesa estava uma moça em uma cadeira de rodas, com deformações no rosto, e uma senhora que parecia ser a mãe dela.

O promotor saiu da sala se questionando sobre o motivo daquela estranha situação. Depois ficou sabendo que momentos antes havia ocorrido uma discussão acalorada entres os advogados das duas partes sobre direitos de herança e indenização por pensão alimentícia. A única que se manteve impassível foi a mãe, que havia se recusado falar com o pai depois que ele abandonou a filha por suas deformações.

Ela só aceitou mover a ação judicial porque a filha havia insistido em ser reconhecida. No auge da discussão, a moça interrompeu e exigiu que todos se calassem. Depois de um breve instante de silêncio, ela falou se dirigindo ao pai: “tudo o que eu quero é poder te abraçar e saber se eu posso te chamar de pai”.

Programa de identificação de paternidade – Encontre o seu pai aqui

Onde encontrar
Além do Poupatempo de São Bernardo, o “Encontre aqui o seu pai” já está disponível nas unidades de Itaquera, Sé, Luz, Santo Amaro, Lapa e Cidade Ademar, em São Paulo. A partir de agosto, o serviço estará disponível também nas duas unidades Poupatempo de Campinas (Shopping e Centro) e em São José dos Campos, Guarulhos e Ribeirão Preto (clique aqui para saber a localização das unidades).

A previsão da Prodesp é de implantar até o fim do ano o serviço em todas as demais unidades do Poupatempo e no Portal do programa www.poupatempo.sp.gov.br.

Como funciona
A pessoa vai à unidade do Poupatempo e preenche uma ficha com o máximo de detalhes, como o nome, endereço e outras informações que permitam localizar a pessoa, e um termo de adesão. O Poupatempo direciona os dados ao MP, que desencadeia o processo.

Muitas das pessoas procuradas estão em outras cidades e estados e o Ministério Público se vale de sua capilaridade e alcance para tentar localizá-las. Nem sempre é possível a localização e o tempo necessário muitas vezes é demorado – poucos são tão breves como o de Shayenne.

O índice de concordância dos pais em reconhecer a paternidade sem a necessidade de testes é considerável. Nas escolas, segundo o promotor Maximiliano Roberto Ernesto, 60% dos casos são resolvidos a partir da concordância do pai em reconhecer o filho no primeiro contato. Também é frequente o número de adultos que recorrem ao serviço, depois de muito anos de sofrimento e constrangimento por não obter o reconhecimento do pai. Muitos preenchem a ficha com lágrimas nos olhos.

Quando o pai se recusa a reconhecer o filho, a parte interessada pode recorrer à Justiça com ajuda do Ministério Público e por meio da Defensoria Pública. Dessa forma, a paternidade pode ser comprovada por testes específicos que utilizam a tecnologia de DNA. Os mesmos testes podem ser aplicados sobre o DNA das ossadas, caso o pai da pessoa já tenha morrido, os chamados testes pós-mortem.

Imesc
Em São Paulo, o Imesc (Instituto de Medicina Social e de Criminologia do Estado), da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, faz testes gratuitos de DNA requisitados pela Defensoria Pública para as pessoas que não têm recursos financeiros para pagar. O teste de DNA, que custa em média R$ 500 nos laboratórios privados, são feitos gratuitamente pelo Imesc. O órgão costuma promover mutirões de testes para agilizar a demanda.