Redecker, a dor e a coragem

Zero Hora

sex, 27/07/2007 - 12h14 | Do Portal do Governo

JOSÉ SERRA/Governador de São Paulo

Zero Hora/ Terça-feira, 24 de julho

Jamais imaginei que, neste ano, a dor ligaria minha vida, profundamente e para sempre, ao povo do Rio Grande. Quase 200 mortos, mais da metade nascida nesse Estado! Hoje faz uma semana. A tragédia que decolou de Porto Alegre e se consumou em São Paulo me leva a compartilhar meu sofrimento com o de todas as famílias gaúchas. Sinto o que sentem. Sexta-feira, perdi minha mãe, menos de três dias depois de ter perdido meu querido amigo Júlio Redecker. Com meu depoimento sobre ele, presto um tributo a todos.

Há alguns anos, voava no avião do presidente da República para Buenos Aires, reunião do Mercosul. Eu era ministro e conversava com o presidente Fernando Henrique sobre nossos problemas com os parceiros vizinhos. De repente, apareceu na cabine presidencial um deputado jovem, falante, de pronúncia clara e bem gaúcha. Fiquei incomodado, porque ele interrompera a conversa, mas em seguida encantado pelo preparo que exibia nas questões da indústria, principalmente de calçados, prejudicada pela sobrevalorização cambial da época e por acordos malfeitos com a Argentina.

“Eis um aliado inteligente e veemente”, pensei na hora. Encontrei-o várias vezes depois disso. Ele era da bancada do PP gaúcho, tão melhor que o PP malufista de São Paulo: “Olha, se você ficar desconfortável com o PP nacional, venha para o PSDB. Você ajudaria muito a fortalecer o partido no Rio Grande”. A resposta veio de quem já refletia sobre o assunto: “Só vou pensar nisso depois das eleições (de 2002) e de fazer tua campanha pra presidente. Agora seria adesismo”.

E como fez a campanha! Nunca esquecerei a viagem num ônibus estranhíssimo de sua campanha à reeleição, com o qual ele percorria o Rio Grande à cata de votos.

Há poucos meses, Júlio Redecker fez um discurso que ajuda a entender o lugar que ocupava na vida pública. “Há homens que não se dobram, que têm idéias e as defendem; e há homens que rasgam inclusive as suas idéias, porque preferem não escrevê-las”. Ele fazia parte deste pequeno time: dos homens públicos que não se dobram.

Orador admirado pelos aliados e temido pelos adversários, encarava a política como um exercício cotidiano de caráter e coragem. Atual líder da minoria na Câmara, tinha gosto e aplicação ao subir à tribuna para fazer críticas ao governo. Mas também não relutava em criticar aliados e colegas de partido, sempre de modo leal, jamais pelas costas. No PSDB, era um articulador severo e disciplinado na defesa da unidade do partido.

Júlio amadureceu como político nas décadas em que o Rio Grande do Sul enfrentou as conseqüências da semi-estagnação da economia brasileira, carente de investimentos públicos e ciclicamente prejudicado pela política cambial. Sempre aplicado, assumiu suas responsabilidades em defesa do Estado e de sua recuperação, em sintonia com as realidades do mundo, mas sem desperdiçar as possibilidades de transformá-lo. Evitou sempre modas ideológicas e posturas políticas simplórias.

Os eleitores do Rio Grande sabem melhor do que eu que a biografia de Júlio Redecker era um patrimônio social de brasileiros e gaúchos: pai taxista, mãe cozinheira, trabalhou até como garçom para pagar os estudos.

Conversamos pela última vez quando ele me visitou em São Paulo – o mesmo Júlio de sempre, cheio de idéias, repleto de planos, pés no chão, lucidez e otimismo. Foi nessa visita que fiquei pensando, depois de saber que o Júlio embarcara naquele vôo. Eu já estava de saída para Congonhas. Olhei para a poltrona do gabinete, onde ele havia sentado, e tentei me acalmar: “Vai ter muitos sobreviventes e ele será um deles”.

Minha esperança ruiu quando cheguei no local da tragédia, a própria tradução do que seria o inferno: o incêndio, a destruição, a retirada dos primeiros corpos carbonizados, por nossos corajosos e organizados bombeiros. E me veio uma tristeza infinita pelas quase 200 pessoas inocentes que vinham de Porto Alegre, entre as quais, meu estimado Júlio, arrancadas da vida daquela forma inapelável, brutal.

Diante da cena mais trágica que já vi na minha vida, imaginei logo o sofrimento do Rio Grande pelo meu próprio, naquele momento. Perdi um amigo leal e companheiro valente, que fará muita falta não só a sua família e ao Rio Grande, mas a todos que com ele convivemos. Júlio vai sobreviver, sim, em cada um de nós e pela vida que ele próprio viveu.