Nove de Julho (09/07/2008)

Folha de S. Paulo

qua, 09/07/2008 - 17h12 | Do Portal do Governo

Folha de São Paulo

O Nove de Julho

JOSÉ SERRA

NA MINHA infância e adolescência, a Revolução Constitucionalista de 1932 era algo muito presente. Eu conhecia pessoas e tinha professores que haviam apoiado o movimento e até participado dos combates. No colégio estadual em que estudava, eram feitos trabalhos e exposições. A bandeira paulista era hasteada com orgulho. Até competições esportivas aconteciam, como a Volta Ciclística 9 de Julho, quando dezenas de ciclistas percorriam o Estado durante quase um mês.

As gerações foram se sucedendo, e a revolução foi caindo no esquecimento. Além do tempo, a ditadura pós-1964 contribuiu para esse apagamento histórico, pois não tinha nenhuma afinidade eletiva com a defesa das liberdades democráticas e de um regime constitucional. A comemoração do 9 de Julho foi se transformando em um ato desprovido de sentido, e o movimento de 1932, empurrado para uma espécie de limbo da história.

O fato é que a abordagem do significado histórico da revolução de 1932 -que representou a maior guerra já havida dentro do território brasileiro- ficou, numa primeira fase, prisioneira de uma armadilha ideológica.

Uns a identificaram com um suposto separatismo, coberto de antivarguismo, e um movimento saudoso da Primeira República. Outros, embora defendessem o 9 de Julho, o fizeram com teses reacionárias, o que facilitou a demonização do movimento. Mas a retomada de seus valores originários -a democracia e a liberdade-, dentro de suas complexidades e ambigüidades, tem merecido, felizmente, maior ênfase em anos recentes.

No seu início, o movimento não ficou restrito a São Paulo: contava com apoio em outros Estados. Mas as hesitações, de um lado, e a rápida ação do governo federal, do outro, acabaram isolando-o militarmente. Iniciada a guerra, as oposições civis nesses Estados foram silenciadas. Os interventores, nomeados pelo poder central, podiam ser demitidos a qualquer hora.

O isolamento paulista acabou permitindo que lhe fosse pespegada a pecha de “separatista”. Em momento nenhum, porém, os líderes constitucionalistas apresentaram proposta nesse sentido. A ênfase do movimento foi a defesa intransigente da “reconstitucionalização” do país e a convocação de eleições livres, com voto secreto. O Brasil vivia sob um regime de exceção, a Constituição estava suspensa, o Judiciário, sem autonomia, e o Legislativo, desativado.

A promessa de convocação das eleições para a Assembléia Constituinte estava sob ameaça constante dos setores governamentais mais autoritários. Dizia-se a todo o momento que o calendário eleitoral proposto em fevereiro de 1932 não seria cumprido.

Os “tenentistas” de 1930 tinham plena consciência de que sua força política dependia da permanência do regime de exceção. A legalidade constitucional contrariaria seus propósitos, pois protegeria a liberdade de opinião, de organização partidária e de imprensa -muitos jornais tiveram suas sedes empasteladas, a exemplo do “Diário Carioca”, em 1932.

Até então, em 110 anos de vida independente, o Brasil não vivera um regime de plena democracia representativa. No Segundo Reinado, tivéramos um parlamentarismo limitado, e grande parte da população livre era excluída das eleições. A Primeira República ampliara o censo eleitoral, mas sem adotar o voto secreto, facilitando fraudes eleitorais e desconhecendo direitos da oposição. Os acontecimentos de 1932, portanto, expressaram a continuidade da ruptura com a velha ordem -um brado contra as promessas não cumpridas, anunciadas em 3/10/30, no bojo da revolução que encerrara a República Velha.

É claro que existiam contradições, ambigüidades, no interior do movimento de 32 -setores mais conservadores se opunham a mudanças políticas que estavam ocorrendo. Não havia uma visão monolítica. Mas a hegemonia era exercida por setores identificados com valores democráticos, com a modernidade de então, e isso explica o amplo apoio obtido em todas as camadas sociais. O livro “1932: Imagens de uma Revolução”, do historiador Marco Villa, mostra, nos documentos e nas fotografias de passeatas, atos públicos e campos de batalha, a ampla configuração social e étnica dos participantes do movimento.

Boris Fausto, na introdução ao livro de Villa, aponta uma característica curiosa dos textos escritos no calor da hora da guerra paulista: “A voz amplamente dominante é a dos vencidos, e não a dos vencedores (…) Se [o movimento revolucionário] não passou, para os vencedores, de uma trágica rebeldia, foi, para os vencidos, um exemplo de participação dos cidadãos em defesa dos mais altos ideais”. E se acabou obtendo a vitória na derrota, pois se impossibilitou que o vencedor postergasse o calendário eleitoral, garantindo-se as eleições de maio de 1933 para a instalação da Assembléia Nacional Constituinte.

O comandante militar da revolução foi um gaúcho, o general Bertoldo Klinger. No Vale do Paraíba, as tropas foram lideradas por um carioca, o coronel Euclydes Figueiredo. Havia batalhões com mineiros, baianos, pernambucanos. A participação da juventude dava ao movimento um ar de esperança na construção de um país democrático. Mais uma vez, estava sendo jogada a sorte do Brasil. Após a independência e a República, o desafio era o compromisso intransigente e inegociável com a democracia.

Enganam-se os que imaginam que recordar 1932 é simplesmente remexer no velho baú da história. É muito mais que isso: é uma bela data da história do Brasil e de São Paulo. Seus sinônimos são a liberdade, o voto secreto, a eleição livre, a independência dos três Poderes, a Constituição.

JOSÉ SERRA , 66, é o governador de São Paulo.