Justiça e novas tecnologias

O Estado de S.Paulo

sex, 24/08/2007 - 9h42 | Do Portal do Governo

Justiça e novas tecnologias

O Estado de S.Paulo

José Serra

Em Paulicéia Desvairada, Mário de Andrade afirma que “ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu”. Não é apenas na literatura que a tradição e o preconceito embaraçam a descoberta do que é novo, moderno e pode ser muito útil. Na prática jurídica, a tendência a conservar velhos ritos cria notória dificuldade para se aceitar toda mudança tecnológica. É este o caso, atualmente, da videoconferência. No passado, a datilografia e a estenotipia provocaram tanta controvérsia que se considerou prudente dizer no Código de Processo Penal (de 1940) que a sentença pode ser datilografada (artigo 388) e, no Código de Processo Civil (de 1973), que o uso da taquigrafia é lícito (artigo 170). Providência semelhante se justifica a propósito do interrogatório a distância.

Em nome de princípios constitucionais valiosos – o devido processo legal e a ampla defesa -, recente decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal anulou um interrogatório porque fora realizado por videoconferência, sem que o réu tivesse saído do presídio em que se encontrava. O velho Código de Processo Penal não regula nem proíbe o uso da videoconferência, que se difundiu amplamente em São Paulo, com a realização de 2.452 teleaudiências em apenas dois anos, a adesão de muitos juízes e a aceitação do Superior Tribunal de Justiça. Essa técnica também foi acolhida num projeto de lei proposto pelo senador Tasso Jereissati, para o qual a Câmara dos Deputados apresentou um substitutivo e que está pronto para ser votado, em definitivo, pelo Senado.

Defendo a aprovação desse projeto e não creio que o método seja contrário à Constituição federal nem aos direitos fundamentais. É natural que o acusado de um crime queira ser visto e escutado pelo juiz que irá julgá-lo. Isso integra a própria noção de um processo penal justo, que só merece essa qualificação quando é disciplinado e percebido como um diálogo, do qual o réu participa, com o respeito à sua condição humana e a oportunidade de ser ouvido e, deste modo, influir na decisão que afetará sua vida. Mas para isso não parece indispensável que o réu e o juiz estejam na mesma sala. Há muito tempo a tecnologia permite transmitir e receber som e imagem em tempo real, assegurando a observação de expressões faciais e de voz de quem participa do interrogatório.

A videoconferência traz para o ambiente judicial o que o telefone e a internet trouxeram para a convivência humana. Elimina o espaço e encurta o tempo. Sob fiscalização e acompanhamento do defensor, do Ministério Público e da sociedade, permite o interrogatório a distância. Também permite que o processo tenha, sem prejuízo das garantias constitucionais, uma duração menor, que o juiz multiplique sua capacidade de trabalho e que o Estado não exponha a sociedade a riscos desnecessários nem dissipe seus escassos recursos com o transporte de presos.

Não há razão para impedir esse ganho de eficiência, que tem entre seus defensores tribunais como o nosso Superior Tribunal de Justiça, a Corte Constitucional da Itália e a Corte Européia dos Direitos Humanos. Estes dois tribunais já examinaram a validade da videoconferência para o interrogatório, que é prevista na legislação italiana, e concluíram que essa técnica garante a ampla defesa e o direito ao processo justo.

Ao redigir a decisão, um dos grandes juristas italianos, Giuliano Vassali, argumenta que não tem fundamento a premissa segundo a qual somente a presença física do acusado no Fórum poderia assegurar a efetividade do seu direito de autodefesa, princípio que não pode ser confundido com as modalidades práticas pelas quais se concretiza em cada processo e cuja realização requer, apenas, que se garanta a participação pessoal e consciente do réu e meios técnicos que sejam idôneos para alcançar esse objetivo.

A Corte Européia dos Direitos Humanos recorda que o uso da videoconferência é previsto no direito internacional, como, por exemplo, na Convenção da União Européia sobre extradição judiciária em matéria penal. A videoconferência realizada em São Paulo, com o apoio do Tribunal de Justiça, conforme procedimento regulado por uma lei do Estado, não torna a atividade judiciária mecânica e insensível, não sacrifica nem diminui a defesa.

Como já foi lembrado em decisões do Superior Tribunal de Justiça, o que muda é a forma de apresentação do acusado, com uma extensão digital da sala de audiência, que “possibilita o contato visual e verbal, em tempo real, entre todas as pessoas envolvidas com o processo, quais sejam, réu, juiz, promotor, defesa, vítima e testemunhas”. E tudo isso garantindo-se que o réu se comunique “com seu advogado através de telefone, reservadamente”, e facultando-se a presença de um defensor “na sala de audiências e outro no presídio”. Ou seja, este é um modo de assegurar a participação livre e consciente do acusado, por meio de uma tecnologia moderna, cuja aplicação é cercada de todos os cuidados para garantir que se expresse com liberdade.

Além disso, o uso da videoconferência torna possível a filmagem do interrogatório e o seu registro perene num CD-ROM, que fica arquivado para consulta de todos, inclusive de outros magistrados. Assim, no julgamento de eventuais recursos, o tribunal pode ver e ouvir exatamente o que o réu disse e o modo como o fez, o que não acontece na forma tradicional de documentação do interrogatório. E este é um benefício valioso, pois faculta a observação direta dessa prova pelo tribunal, o que é melhor do que a mera leitura de palavras impressas, que são veículos imperfeitos do pensamento e estão mais expostas a equívocos de interpretação do que a observação atenta do modo como o interrogatório realmente ocorreu.

José Serra é governador do Estado de São Paulo