USP: Médicos divergem a respeito do uso de drogas

Estudo mostra que não há consenso entre a classe médica sobre o que pode ser considerado 'droga' e quais sintomas indicam uma patologia

qua, 22/12/2004 - 19h50 | Do Portal do Governo

O debate público a respeito do uso de drogas atualmente se prende à opinião médica e camufla controvérsias. Essa é a conclusão de uma pesquisa, realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais (FFLCH) da USP, que analisou as características dos discursos presentes nessa discussão. O antropólogo Maurício Fiore concluiu que a classe médica está longe de atingir um consenso, com relação a recomendações e conceitos, e que a mídia não é o espaço de opiniões e conhecimentos múltiplos que afirma ser.

De acordo com Fiore, um pressuposto essencial de seu trabalho é a visão de que o uso de drogas é um problema social historicamente recente – coincide com a consolidação, no século XIX, da medicina como um saber científico e legítimo. A partir desse ponto, o debate centrou-se, no Ocidente, sobre os eixos da medicalização (abordagem sob uma perspectiva médica) e do crime.

Para seu estudo, o antropólogo entrevistou dez médicos ligados a universidades – USP e Unifesp – e a instituições que oferecem tratamento a dependentes de drogas. O pesquisador detectou controvérsias da opinião médica a respeito da definição do termo ‘drogas’. Trata-se de uma divergência semelhante à encontrada entre a população em geral: há uma tendência a dissociar as substâncias psicoativas legais (álcool e cigarro, por exemplo) das ilegais (maconha, cocaína, heroína). O termo ‘drogas’ costuma ser empregado apenas para estas últimas.

Também há controvérsias quanto ao processo de identificação de uma doença. ‘Foi praticamente consensual a afirmação de que nem todo usuário de drogas pode ser considerado um doente’, informa o antropólogo. Para os médicos, o principal indicador de que uma pessoa se encontra num estado patológico de abuso está no desrespeito às convenções sociais consideradas normais. Nesse caso, o julgamento da situação de dependência é transferido a familiares, amigos, colegas de trabalho e ao próprio Estado.

Quanto às motivações para o uso de drogas, três fatores foram apontados pelos médicos como determinantes: uma curiosidade típica da adolescência, a busca de uma fuga ou compensação para uma vida difícil, ou simplesmente o prazer.

Limitações da mídia

Fiore chama a atenção para a expressiva participação de médicos no debate público proposto pela mídia. ‘Quando o assunto é especificamente o uso de ‘drogas’, a presença da medicina é preponderante sobre qualquer outra classe de especialistas’, diz. Assim, numa discussão que envolve também aspectos sociais e legais, é de se estranhar a escassez de opiniões de juízes, antropólogos e sociólogos, por exemplo.

Outra limitação da mídia está na apresentação de posicionamentos dicotômicos – como ser ‘a favor’ ou ‘contra’, ‘fazer bem’ ou ‘fazer mal’. Dessa forma, a fala da autoridade médica é utilizada apenas para reforçar, cientificamente, uma posição pré-existente, moldada pela moral da comunidade.

Redução de Danos

Fiore notou uma divisão de opiniões entre o grupo de médicos que defende uma visão mais ‘tradicional’ do uso de drogas e aquele que adere à chamada Redução de Danos (RD), uma estratégia que, segundo ele, ‘se baseia em fatos, e não em crenças’ e que observa tanto aspectos negativos quanto positivos do uso de drogas – como crises de abstinência e o prazer induzido pelas drogas.

O grupo acredita que não é possível eliminar por completo o uso de drogas – algo que a visão tradicional toma como ideal – e defende uma ‘desmedicalização’ do debate. Para essa vertente, o centro da discussão deve ser transferido das questões fisiológicas para os aspectos sociais, culturais e psicológicos.

Flávia Souza – Agência USP