USP: Mais de 100 anos de luta consolidam Ciências Farmacêuticas como referência

Instituição foi fundada em 12 de outubro de 1898 como Escola Livre de Pharmacia de São Paulo

qui, 07/10/2004 - 11h07 | Do Portal do Governo

Justiça se faça à Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo. Nestes quase 106 anos de funcionamento, ela exibiu inesgotável capacidade de superar dificuldades e responder a desafios. Fundada em 12 de outubro de 1898 como Escola Livre de Pharmacia de São Paulo, manteve-se de pé em seus primórdios graças à abnegação dos fundadores. Médicos ou membros da Sociedade Pharmacêutica Paulista davam aulas de graça – ou recebendo quantias simbólicas – até que o orçamento da instituição saísse do vermelho.

A criação da escola estava prevista havia mais de 20 anos, mas foi graças ao grupo, liderado pelo médico fluminense Bráulio Gomes e o farmacêutico Pedro Baptista de Andrade que a idéia se realizou, fazendo surgir o quarto curso de farmácia do País e o primeiro de São Paulo. Logo apareceram novas demandas. O governo da província delegou à escola a tarefa de submeter a exames aspirantes a dentistas e parteiras ‘enquanto não existissem no Estado cursos especiais de arte dentária e de partos’.

Em 1902, a instituição chamou para si a tarefa de formar esses profissionais, tornando-se Escola de Pharmacia, Odontologia e Obstetrícia. As duas novas carreiras se desmembrariam ao longo do tempo – a obstetrícia desgarrou-se em 1911, e a odontologia, em 1962. A excelência da Faculdade de Ciências Farmacêuticas se explica por sua capacidade de se reinventar. Por muito pouco, o curso não fechou as portas na década de 1920.

Intervenção

A concorrência com outras escolas de farmácia e um escândalo que cassou o credenciamento federal da faculdade fizeram com que os alunos debandassem e professores pedissem demissão, desinteressados de trabalhar num local sem licença para funcionar. Seus bens foram seqüestrados e, em 1932, o médico e anatomista Benedicto Montenegro foi designado interventor. No ano seguinte, o governo federal restabeleceu o credenciamento.

Montenegro foi personagem-chave na reabilitação da faculdade. Colocou-a em operação e, algum tempo depois, convenceu o governo paulista a incorporá-la ao projeto da Universidade de São Paulo. Em 1934, a Faculdade de Pharmacia e Odontologia de São Paulo deixou de existir.

Em seu lugar foi criada a Faculdade de Pharmacia e Odontologia da Universidade de São Paulo.
Na prática, estudantes e educadores integraram-se aos quadros da USP, e o prédio na Rua Três Rios, no bairro do Bom Retiro, centro de São Paulo, foi incorporado ao patrimônio da universidade. Garantia-se a continuidade do projeto acalentado pela Sociedade Pharmacêutica Paulista de formar ‘moços capazes de trabalhar em química, habilitados para a indústria e com coragem e conhecimentos suficientes para se enfrentar com as dificuldades de análises sérias e importantes’, como propôs um editorial de maio de 1895 da Revista Pharmacêutica, órgão oficial da entidade.

Referência nacional

Nos últimos 70 anos, período em que sua trajetória vinculou-se à USP, a Faculdade de Ciências Farmacêuticas não se limitou a formar mão-de-obra. Consolidou-se como referência nacional em ensino, pesquisa e pós-graduação. Com 800 alunos de graduação, 250 de mestrado e 200 de doutorado, a instituição tem hoje 80 docentes – 98% doutores e 96% em regime de dedicação integral à docência e à pesquisa. No ano passado, publicou 102 artigos em periódicos no País e 91 no exterior. ‘O objetivo é divulgar cada vez mais e formar recursos humanos. Muitos dos nossos mestres e doutores lecionam em outras universidades’, diz a professora Maria Inês Rocha Miritello Santoro, presidente da Comissão de Pesquisa.

A Faculdade de Ciências Farmacêuticas foi um exemplo de integração à Universidade de São Paulo. Ao contrário de outras que já existiam antes da USP, como as de Medicina e de Direito, trocou sem reclamações seu endereço tradicional, no bairro do Bom Retiro, por uma área de 80 mil metros quadrados na lamacenta Cidade Universitária, em 1966. ‘Apesar das dificuldades, o câmpus aparecia como o lugar ideal para o desenvolvimento de atividades, sem ruídos, contrastando com as salas de aula da Rua Três Rios, constantemente perturbadas pelo tráfego pesado de caminhões’, registrou a professora catedrática Maria Aparecida Pourchet-Campos em seu livro A vida da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo.

Divisor de águas

O prédio original, erguido nas várzeas despovoadas do Bom Retiro no início do século 20, foi tombado pelo patrimônio histórico e abriga oficinas culturais do governo do Estado de São Paulo. Os antigos alunos ainda guardam memórias do edifício de 136 janelas, como a imagem solene do professor siciliano Quintino Mingoja. ‘Ele exigia que os estudantes ficassem de pé quando entrava na sala de aula’, afirma Paulo Minami, professor aposentado do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas, organizador do acervo histórico. ‘Mingoja se aposentou e, tempos depois, retornou para dar aulas. Ficou muito magoado no primeiro dia, porque uma turma desavisada permaneceu sentada quando ele entrou na sala.’

No prédio da Rua Três Rios, os universitários cortejavam as moças do Colégio Santa Ignês, do outro lado da calçada, mas a antiga sede também foi palco de eventos históricos, como a premiação, com o título de doutor honoris causa, de Alexander Fleming, o pai da penicilina, quando visitou o Brasil em 1954. Os estudantes foram em comitiva à estação de trem, no bairro do Brás, recepcionar Fleming, e ficaram surpresos com a concentração de populares. Mas o pai da penicilina passou despercebido. O povo aguardava mesmo era a chegada da Seleção Brasileira de Futebol.

A transformação da faculdade seria coroada na virada para a década de 1970, com a reforma universitária. A Faculdade de Farmácia e Bioquímica passou a denominar-se Faculdade de Ciências Farmacêuticas, e deflagrou-se uma reestruturação que deu origem aos quatro atuais departamentos: Farmácia, Alimentos e Nutrição Experimental, Análises Clínicas e Toxicológicas e Tecnologia Bioquímico-Farmacêutica. ‘A reforma permitiu uma necessária reorganização do currículo’, diz o professor Jorge Mancini, ex-diretor da faculdade. ‘A pesquisa, antes da reforma, não era intensa como hoje’, completa.

Pesquisas inovadoras no Brasil

Os quatro departamentos da faculdade dedicam-se a linhas de pesquisa inovadoras no Brasil, cuja relevância pode ser medida pela aplicação prática que terão na vida e na saúde dos brasileiros. O Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental dedica-se, desde o final dos anos 80, ao estudo de substâncias antioxidantes naturais encontradas em alimentos como dendê, castanha de caju, castanha-do-pará, alecrim ou orégano. O objetivo, a princípio, era testar a utilização dessa matéria-prima em substituição a antioxidantes sintéticos, usados para conservar alimentos e suspeitos de fazer mal à saúde humana.

A pesquisa foi ganhando importância ao longo da década passada, enquanto acumulavam-se evidências de que os antioxidantes podem ajudar a prevenir doenças. Mostrou-se, por exemplo, que é possível enriquecer alimentos, como o pescado, com essas substâncias – dependendo da dieta que se dê ao peixe. Com isso, a carne é melhorada nutricionalmente e demora mais tempo para deteriorar. Outro trabalho do departamento, com alimentos funcionais (aqueles que têm propriedades terapêuticas e preventivas) auxiliou na compreensão do metabolismo das frutas depois de colhidas e ajudou a desvendar os processos bioquímicos que as tornam doces e macias.

Salto qualitativo

No Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas, destacam-se trabalhos, que, em parceria com o Instituto de Química da USP, ajudaram a desenvolver tecnologia para diagnósticos clínicos baseados na utilização de reações que emitem luz e permitem mensurar o nível de várias enzimas de interesse laboratorial.

O Departamento de Farmácia vem produzindo, há mais de dez anos, técnica de controle de qualidade de medicamentos capaz de separar moléculas que têm os mesmos grupamentos químicos como radicais de um átomo de carbono, porém com configuração em que uma é a imagem espelhada da outra. A distinção dos dois tipos de molécula é importante porque, normalmente, apenas uma delas apresenta efeito terapêutico. Em alguns casos, a outra, além de não ter efeito farmacêutico, pode apresentar propriedades tóxicas. Com a técnica, pode-se separar e quantificar os dois tipos de compostos.

Esses estudos são apenas uma amostra do que é realizado no conjunto situado na Avenida Lineu Prestes (ex-diretor da instituição), na Cidade Universitária. Há trabalhos em muitas outras áreas, como na de fármacos com atividade contra a doença de Chagas, no diagnóstico de cisticercose (uma parasitose), ou em marcadores genéticos de diagnóstico. ‘Nos últimos 15 anos, investimentos na renovação de laboratórios, feitos pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), deram lastro ao salto qualitativo’, diz o professor Jorge Mancini.

Instituição está sempre se reinventando

A imagem do farmacêutico como uma espécie de médico dos momentos de aflição foi superada. Se no início do século passado o apelo da profissão firmava-se na profusão de anúncios de remédios nos bondes, nos anos 60 o mercado de trabalho expandiu-se geometricamente, com a instalação do parque de indústrias de medicamentos no País. A maioria dos farmacêuticos-bioquímicos sai da faculdade para trabalhar em fábricas de remédios. As áreas de análises clínicas e da indústria de alimentos também atraem esses profissionais, num mercado de constantes mudanças.

Nos últimos quatro anos, o currículo da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP ganhou 21 novas disciplinas – temas momentosos como Alimentos Geneticamente Modificados, Medicamentos Genéricos e Bioequivalência e Toxicologia Forense. A instituição, como se vê, está sempre se reinventando.

Fabrício Marques – Da Revista Fapesp
Da Agência Imprensa Oficial

(AM)