Pesquisa: Sérgio Adorno faz análise sociológica da violência

Sociólogo é coordenador do Centro de Estudos da Violência da USP

ter, 18/11/2003 - 11h08 | Do Portal do Governo

Da Agência Fapesp
Por Eduardo Geraque

O Centro de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), antigo Núcleo de Estudos da Violência (NEV), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, nasceu com a missão de investigar a violência do ponto de vista social. O capital intelectual que reúne diante de uma temática única não é formado por criminologistas. O objetivo é gerar conhecimento que possa ser utilizado pela sociedade ou pelo poder público. Faz parte do dia-a-dia do centro dar curso para policiais civis e militares. O centro atende também, por intermédio de programações direcionadas, professores que lidam com jovens ou crianças das camadas da sociedade bastante próximas ao crime.

Fundado em 1987 como Núcleo de Estudos da Violência e atualmente com cerca de 60 pesquisadores, o centro tem como um de seus principais trabalhos a produção de mapas sociais do município de São Paulo, com, por exemplo, o número de homicídios, lesões corporais ou outros tipos de violência nos diversos distritos da capital paulista. Além dessas ferramentas de análise, os cientistas trabalham para gerar estudos teóricos que apoiem a reflexão sobre o problema cada vez mais presente e preocupante que é o da violência urbana.

Em entrevista à Agência FAPESP, um dos coordenadores do Centro de Estudos da Violência, o professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas da USP, Sérgio Adorno, revelou alguns novos estudos e falou sobre a questão da violência e da segurança pública no Brasil. Segundo ele, o quadro não é dos melhores no curto prazo e a alternativa mais eficiente passa por reformas, planejamento estratégico e uma sinergia cada vez maior entre conhecimento e políticas públicas.

Agência Fapesp – Um dos pontos nevrálgicos da segurança pública atualmente é a falta de planejamento?

Adorno – Não quero dizer que não exista planejamento, mas ele ainda é muito circunstancial, feito sob a pressão dos acontecimentos. Quando há, por exemplo, ataques em série do PCC (a facção criminosa Primeiro Comando da Capital), descobre-se que é preciso investir em uma inteligência policial com características específicas. É preciso que exista um planejamento estratégico feito com base em dados confiáveis. Hoje, com os estudos que vêm sendo feitos, é possível examinar cenários e projetá-los para o futuro. Podemos investir em áreas onde há maior probabilidade de ocorrer certos tipos de crime.

Agência Fapesp – Os mapas da violência produzidos pelo Centro de Estudos da Violência seriam boas ferramentas para esses planos estratégicos?

Adorno – Eles permitem ver como certas combinações de carências sociais estão associadas à presença do tráfico de drogas, com jovens que, na falta de alternativas, acabam se envolvendo com situações de transgressão da ordem ou com uma polícia violenta. Em grande parte, os mapas mostram que a violência passa por carências sociais, mais em algumas regiões da cidade e menos em outras. Muitas vezes o cenário não explica tudo, mas os mapas ajudam a refinar a análise. Podemos descobrir, por exemplo, duas regiões com carência de escolas, onde uma delas é mais violenta. Nesse caso, será preciso analisar não a quantidade, mas a qualidade das escolas, verificar o envolvimento dessas instituições com a comunidade, dos professores com os alunos ou com os pais desses. Os mapas são indicadores que permitem movimentar o nosso olhar, evitando uma visão enviezada dos problemas.

Agência FAPESP – A relação entre violência e pobreza é sempre direta?

Adorno – Não acho que tudo possa ser explicado pela pobreza. Temos que pensar nas condições de vida, em termos de política de prevenção. É a mesma coisa na saúde. Condições precárias de habitação não explicam completamente uma determinada situação de epidemias ou endemias. Para imunizar uma parte da população, é preciso existir saneamento básico, água potável. São requisitos mínimos universalizados e é esse tipo de raciocínio que precisa, de alguma maneira, ser incorporado pelas autoridades políticas encarregadas de administrar a segurança pública. São políticas também sociais, como segurança alimentar, escolar ou do trabalho. Precisamos construir uma rede de relações sociais na qual pelo menos 80% ou 90% da população tenha a menor oportunidade possível de derivar para o mundo da violência e do crime, seja na condição de vítima ou de agressor.

Agência Fapesp – É possível identificar uma certa resistência na sociedade com relação à expressão “direitos humanos”. Muitos acreditam que “direitos humanos” são “direitos dos bandidos”. Onde está a origem desse discurso?

Adorno – Isso tem uma historicidade, inclusive muito bem contada por vários analistas, como a professora Tereza Caldeira (da Universidade da Califórnia, em Irvine) no livro ‘Cidade de Muros’. Com a transição da democracia, insistimos muito no sentido de que uma sociedade democrática é aquela que preserva os direitos humanos. Depois, surgiu uma articulação que veio da direita, aproveitanto esse discurso, dizendo que o bandido é a vítima. Mas é evidente que isso não é verdade. Quem defende os direitos humanos não está defendendo criminosos, mas sim uma sociedade na qual todos os cidadãos possam estar protegidos. De qualquer maneira, acredito que esse discurso esteja envelhecido. Ele ainda resiste porque as pessoas não conseguem ver mudanças claras relacionadas à sua segurança. A violência não é uma invenção, não é uma histeria. As pessoas estão sendo assaltadas, mortas, estão cada vez mais preocupadas em voltar para casa.

Agência Fapesp- A percepção da violência, de certa forma, está muito além do real?

Adorno – Existe a fabricação do medo e, muitas vezes, uma percepção exagerada por parte da população. Mas isso não deixa de ter um fundo real. O crime organizado, por exemplo, tem uma grande capacidade de mobilização e de causar problemas, inclusive para as autoridades encarregadas de controlar prisões. É evidente que a parcela da população carcerária envolvida com o crime organizado é pequena, mas a imagem que fica é que todo preso pertence ao PCC ou à uma facção rival. Desse modo, acaba se criando a sensação de estarmos em uma guerra civil, na qual é legítimo matar o inimigo.

Agência Fapesp- Qual o papel da mídia nessa ressonância da violência?

Adorno – Claro que a mídia tem uma capacidade de traduzir os fatos com uma ressonância diferente de um simples rumor localizado, mas não podemos atacá-la como um todo. Parte dela é responsável e tem feito um trabalho sério ao colocar a violência em debate, mas há os que se identificam com a fabricação do medo, muitas vezes fazendo isso por uma maior audiência, por interesses financeiros. Alguns, inclusive, estão convencidos de possuir a missão de serem porta-vozes da desgraça alheia. É uma sociedade complexa, não de mocinhos e bandidos, mas de pessoas que vivem em situações muito precárias. Nos bairros mais pobres, as pessoas não pedem a morte dos bandidos, mas que eles saiam dali. Elas sabem que, muitas vezes, o bandido é o mesmo menino criado ali no bairro, conhecidos por todos.

Agência Fapesp – Mas o quadro da violência, especialmente a urbana, parece bastante caótico?

Adorno – Apesar de ser um problema muito sério, não acredito que exista uma crise de Estado. Outras áreas, mesmo que não estejam satisfazendo plenamente a população, estão funcionando. O sistema escolar ou o de saúde, por exemplo. Também não se perdeu o controle da criminalidade. De seu lado, o Judiciário está em uma situação muito crítica, que exige um diagnóstico preciso. Parte dos desembargadores está convencida da necessidade de mudanças. A justiça precisa mudar para ficar mais eficiente e oferecer maior segurança ao cidadão.

Agência Fapesp- Essa questão também tem a ver com a impunidade, que o sr. está estudando no momento?

Adorno – Nosso estudo sobre a impunidade tem uma grande meta, que é contribuir para a reforma do sistema de justiça penal. Trata-se de uma reforma que será feita por partes, que não vai resolver tudo de uma única vez. Além de ser uma questão política, nenhuma das reformas que conheço foi feita da noite para o dia. Na França, para se chegar ao padrão considerado adequado hoje, levou quase um século. Espero que nossa pesquisa possa contribuir para um debate público e político, envolvendo policiais, juízes e a sociedade civil. Precisamos discutir, a partir de um quadro real, como a situação da violência atual pode ser enfrentada no curto, médio e longo prazo. Os estudos do NEV mostram que a impunidade é muito elevada e não vai mudar de 10 para 100 rapidamente. Mas pode ser viável aumentar a proporção de condenações por crimes graves de 10 para 25, no espaço de cinco anos. Então, vamos tentar fazer isso. Na próxima etapa, poderemos subir de 25 para 50. Se houver um planejamento, como se faz, por exemplo, em algumas áreas estratégicas, como o petróleo, nas quais se pensa em períodos do tipo cinco ou seis décadas, poderemos resolver muitos problemas.

Mais informações podem ser obtidas no sitewww.agencia.fapesp.br

V.C.